A saúde mental retratada por adolescentes: uma pesquisa criativa.
Mental health described by adolescents: a creative study
Danieli Amanda Gasparinia , Maria Fernanda Barboza Cida
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, São Carlos, SP, Brasil.
Como citar: Gasparini, D. A., & Cid, M. F. B. (2025). A saúde mental retratada por adolescentes: uma pesquisa criativa. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 33, e3886. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO399838861
* Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution.
Resumo
Introdução: Partindo de uma concepção plural da adolescência e da necessidade de ampliar os espaços de escuta das pessoas que vivenciam esse processo, observa-se sinalizações da literatura sobre a necessidade de que estudos considerem o lugar de fala da população adolescente a respeito da saúde mental e da adoção de metodologias que a considerem na produção de conhecimento sobre si. Objetivo: Identificar as compreensões de adolescentes estudantes de ensino médio sobre saúde mental. Método: Pesquisa qualitativa, realizada junto a 15 adolescentes estudantes de ensino médio, que utilizou do método criativo de elucidação gráfica para a produção dos dados. Os adolescentes escolheram elementos presentes em suas vidas para representar suas perspectivas sobre saúde mental. Resultados: Os participantes abordaram a saúde mental de forma ampla, relacionada à sensação de bem-estar, às possibilidades de se relacionar e ter uma rede de apoio, bem como a realização de atividades significativas e prazerosas. Conclusão: Os resultados reforçam a necessidade de um conceito ampliado de saúde mental, contextualizado com as necessidades, desejos, experiências, cultura e história dos sujeitos. Além disso, destacam a importância do investimento em estratégias de pesquisa que garantam o lugar de fala de adolescentes.
Palavras-chave: Adolescente, Saúde Mental, Metodologia, Criatividade, Visualização de Dados.
Abstract
Introduction: Based on a pluralistic conception of adolescence and the need to expand the spaces for listening to people who experience this process, there are indications in the literature about the need for studies to consider the place of speech of the adolescent population regarding mental health and the adoption of methodologies that consider them in the production of knowledge about themselves. Objective: To identify the understandings of high school adolescents about mental health. Method: Qualitative research, conducted with 15 high school adolescents, which used the creative method of graphic elucidation to produce data. The adolescents chose elements present in their lives to represent their perspectives on mental health. Results: The participants approached mental health in a broad way, related to the feeling of well-being, the possibilities of relating and having a support network, as well as the performance of meaningful and pleasurable activities. Conclusion: The results reinforce the need for a broader concept of mental health, contextualized with the needs, desires, experiences, culture and history of the subjects. In addition, they highlight the importance of investing in research strategies that guarantee the place of speech of adolescents.
Keywords: Adolescent, Mental Health, Methodology, Creativity, Data Visualization.
Introdução
A adolescência é um conceito que se transforma continuamente. Embora dispositivos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) delimitem períodos etários para caracterizar esse momento de vida (12 a 18 anos para o ECA e 10 a 19 anos para OMS) com o intuito de estabelecer marcos legais que orientem o planejamento de políticas públicas, alguns autores têm defendido que é preciso considerar a adolescência em oposição a compreensões normalizadoras e desenvolvimentistas, que acabam por reforçar estereótipos como uma “fase” transitória (Brasil, 1990; Organización Mundial de La Salud, 2014; Castro, 2021). No entanto, é por meio da contínua interação entre a pessoa, com suas singularidades biológicas e psicológicas, e considerando o contexto histórico e sociocultural no qual ela vive, que o processo de adolescer acontece. Por isso, parte-se de uma pluralidade nas formas de ser adolescente (Gasparini, 2022; Rossi et al., 2019; Coutinho, 2009).
Alguns dados referentes a esse público têm demonstrado uma ampliação das problemáticas relacionadas à saúde mental. A Pesquisa Nacional de Saúde Escolar de 2019, que analisou 125.123 escolares entre 13 e 17 anos, de escolas públicas e privadas das grandes regiões brasileiras, verificou que 17,7% desses adolescentes tiveram uma autoavaliação negativa de sua saúde mental. Além disso, outros 21,4% sentiam que a vida não valia a pena ser vivida; enquanto 40,9% se sentiam nervosos, irritados ou mal-humorados e 31,4% sentiam-se tristes na maior parte do tempo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021; Antunes et al., 2022).
Um relatório recente da Organização Mundial da Saúde (World Health Organization, 2022) indica que a adolescência é um momento sensível para a saúde mental, já que 14% dos adolescentes do mundo (considerando a faixa etária entre 10 e 19 anos) possuem algum transtorno mental e que o suicídio é uma das principais causas de morte dessa população. O relatório também aponta para uma escassez de profissionais, serviços e força de trabalho voltados para a atenção à saúde mental desse público.
Além disso, é preciso considerar a pandemia da COVID-19, que demandou medidas de distanciamento social, impactou as escolas, os espaços de circulação e os serviços de assistência a adolescentes, o que trouxe reverberações negativas para a saúde mental dessa população (Oliveira et al., 2020) especialmente durante aquele período, mas que ainda podem ser percebidas. Observa-se que várias indicações da literatura sobre o tema reforçam que adolescentes são mais propensos ao desenvolvimento de problemáticas relacionadas à saúde mental. Por isso, uma abordagem que considere os fenômenos culturais, sociais e temporais que permeiam esse momento de vida é necessária, já que análises individualizantes e que buscam enquadrar os processos do adolescer em concepções normalizadoras podem reforçar estereótipos e preconceitos por essa ser uma “fase problemática”.
Nesse sentido, são necessárias investigações que busquem explorar a diversidade de experiências vivenciadas pelos adolescentes, na perspectiva deles mesmos, de forma contextualizada no que se refere aos aspectos culturais, econômicos, sociais e temporais, no sentido de construir produções que não sejam silenciadoras dos processos e das necessidades desses sujeitos (Lourenço, 2017; Jucá et al., 2021; Rossi et al., 2019; Silva et al., 2019).
Um estudo relevante e, nessa perspectiva, exemplar, é o de Persson et al. (2017), que investigou a opinião de adolescentes suecos sobre o cuidado em saúde mental oferecido por um determinado serviço. Os participantes apontaram para a necessidade de serem vistos e ouvidos, e relataram experiências negativas com os profissionais de saúde, que frequentemente não prestavam atenção em suas demandas, tampouco as consideravam como um assunto sério. Além disso, os participantes contaram ainda que os profissionais restringiam-se apenas às problemáticas apresentadas, demonstrando falta de compreensão sobre suas experiências mais amplas. Ademais, afirmaram que os profissionais da área dedicavam maior atenção ao relato dos pais ou responsáveis, em detrimento do que os adolescentes expunham, fazendo com que eles se sentissem inferiorizados e despersonalizados, uma vez que terceiros poderiam, se requisitados, falar sobre os sentimentos que, ao fim, eram pessoais e intransponíveis.
Fernandes et al. (2022), referindo-se aos conceitos de saúde mental no campo de atenção à população infantojuvenil, apontam que são poucas as abordagens que procuram abordar a especificidade das adolescências, sendo necessário expandir seus elementos. Isso pode ser resultado da recente inserção da saúde mental infantojuvenil nas agendas das políticas públicas. As autoras indicam, ainda, uma possível definição, com base em estudos provenientes do campo, classificando a saúde mental infantojuvenil como:
[…] dinâmica e resultado da relação complexa entre os recursos e habilidades pessoais, fatores contextuais e determinantes sociais que, na dimensão do cotidiano, estão diretamente implicados na possibilidade de participação, fruição, reconhecimento e enfrentamento de desafios. Dentre outras, envolve-se a possibilidade de experienciar prazer, frustração, afeto, motivação e proatividade implicados nas descobertas e aprendizados genuínos da infância e da adolescência (Fernandes et al., 2022, p. 4).
Na busca por estratégias que garantam espaços de escuta para a população adolescente na produção de conhecimento, as metodologias de pesquisa que são tradicionalmente utilizadas parecem ir na contramão do objetivo de incluí-los e considerá-los de forma aprofundada e respeitosa. As experiências de vida dessas pessoas são diferentes das vivências dos adultos, que são os que, na esmagadora maioria das vezes, produzem o conhecimento – inclusive sobre os próprios adolescentes, que, em momento algum, são convidados a serem interlocutores. Dessa maneira, é necessário repensar caminhos metodológicos interessantes e favoráveis à participação de adolescentes especialmente nas pesquisas acadêmicas, mas não só (Johansson et al., 2007).
Um estudo de revisão sobre pesquisas participativas com adolescentes no campo da saúde mental revela que estudos que consideram a participação direta desses sujeitos ainda parecem incipientes, em nível nacional, mas também mundial (Táparo et al., 2023). Destaca, também, que garantir a participação desses sujeitos irá demandar que “[…] outras estratégias de escuta sejam disponibilizadas e inventadas, levando em consideração as especificidades e potencialidades dos adolescentes”, o que convoca os pesquisadores a reconsiderar se o modo como estão abordando essa população é realmente efetivo e inclusivo (Táparo et al., 2023, p. 10).
Por isso, a utilização de métodos de produção de dados mais participativos e criativos pode ser uma estratégia que permita o maior direcionamento do foco da pesquisa para elementos que dialoguem com as percepções, contextos, cotidianos e vivências dos participantes. Esses dispositivos criativos podem ser imagens, fotos, músicas, elementos gráficos ou qualquer outra base criativa que privilegie a intuição e a imaginação como recursos que favoreçam a expressão do participante em relação à temática investigada. Dessa maneira, suas narrativas serão mais ampliadas e representativas (Liebenberg, 2009; Kara, 2015).
As observações aqui destacadas evidenciam a necessidade de que estudos futuros procurem desenvolver a temática da saúde mental agora pela perspectiva e vivência das próprias pessoas adolescentes, valendo-se de metodologias que considerem e dialoguem com as singularidades e os variados contextos em que elas se encontram, considerando-as na construção do conhecimento sobre si e nas suas concepções sobre saúde mental. Assim, o objetivo desta pesquisa foi identificar as compreensões de adolescentes estudantes de ensino médio sobre saúde mental.
Percurso Metodológico
O estudo foi autorizado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos de uma universidade pública federal (CAAE:39705420.7.0000.5504) e seguiu todas as questões éticas e legais. Os/as participantes menores de idade foram submetidos ao Termo de Assentimento Livre Esclarecido (TALE), portanto, seus responsáveis legais assinaram, por sua vez, o Termos de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE). A participante maior de idade, então, assinou diretamente o TCLE.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de abordagem exploratória, que se valeu, para a produção dos dados, da técnica de Elucidação Gráfica, que consiste no uso de fotografias, vídeos, músicas, entre outros dispositivos criativos de comunicação não verbal escolhidos livremente pelos participantes da pesquisa para desencadear suas narrativas e enriquecer os dados da investigação. Cada participante apresenta, cria ou interpreta representações que estejam relacionadas ao tema da pesquisa durante a interação com a pesquisadora (Prodanov & Freitas, 2013; Cortés, 2017).
A utilização dessas representações, escolhidas pelos próprios participantes, é uma estratégia que busca acessar as suas realidades de forma mais aprofundada, já que elas podem oferecer outras formas de compreensão da temática estudada, diferentes das técnicas convencionais de pesquisa (como as entrevistas, por exemplo), privilegiando a criatividade dos participantes para a realização da pesquisa. Ressalta-se que não é feita uma análise interpretativa da foto (nem de qualquer outro dispositivo criativo de comunicação não verbal), mas das narrativas emergidas sobre elas e os motivos pela escolha (Cortés, 2017; Liebenberg, 2009). Assim, esse dispositivo não verbal opera, de certa maneira, como um desencadeador do discurso, que, ele sim, será analisado.
Especificamente sobre os procedimentos metodológicos da pesquisa aqui apresentada, destaca-se que a produção de dados ocorreu em um município do interior de São Paulo. Nesse sentido, é válido ressaltar que, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021), a região sudeste concentra o maior percentual estimado de escolares entre 13 e 17 anos. É no estado de São Paulo, mais especificamente, que encontramos a população adolescente mais privilegiada em aspectos econômicos, acesso à educação e posse de bens e serviços, em comparação com as realidades de outros estados brasileiros (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021; Corti, 2015).
. A produção dos dados desta pesquisa ocorreu entre os meses de março e junho de 2021, momento em que, no Brasil, a pandemia da COVID-19 e as medidas de contenção da doença foram intensificadas. Por isso, o contato inicial com e o convite aos/às adolescentes (assim como com seus responsáveis, no caso dos que não tinham 18 anos completos) ocorreu por meio de um aplicativo de mensagens instantâneas.
A impossibilidade de contato presencial também justificou o uso da técnica de amostragem “bola de neve” para a identificação dos/das adolescentes que viriam a ser participantes. Nela, são utilizados informantes-chaves para localizar participantes com o perfil necessário para a pesquisa e depois solicita-se que esses indiquem novos participantes a partir de seus próprios círculos sociais (Vinuto, 2014). A identificação dos participantes iniciou-se por meio de pessoas do círculo social da pesquisadora, que indicaram adolescentes que atendiam aos critérios de inclusão do estudo: os/as que estavam cursando o ensino médio em escolas localizadas no município alvo da pesquisa. Adolescentes que, mesmo indicados, não cursavam o ensino médio foram excluídos do estudo. A identificação dos primeiros participantes foi realizada com a ajuda de cinco informantes-chaves. No decorrer da produção dos dados, outros quatro adolescentes foram indicados por participantes previamente identificados.
Considerou-se, para o estudo, adolescentes estudantes do ensino médio, de escolas públicas e particulares. O processo de seleção dos participantes encerrou-se quando não foram recebidas novas indicações e quando se atingiu a saturação teórica, isto é, momento em que não estavam surgindo informações novas na análise dos dados produzidos (Fontanella et al., 2008).
Após o convite, autorização e o aceite de cada adolescente e de seus responsáveis (quando necessário), foi explicado que a produção dos dados ocorreria em um encontro posterior com a pesquisadora via chamada de vídeo online. Nesse encontro futuro, o/a adolescente também era convidado a trazer suas concepções sobre a temática da pesquisa. O pedido era feito a partir da seguinte afirmação:
Solicito que, para o nosso encontro, você traga algo que represente o que é saúde mental para você. Pode ser algo ‘já pronto’, ou algo que você queira produzir, ou já tenha produzido. Exemplo: uma música que você acha que represente a saúde mental para você, ou um desenho que você tenha feito, um objeto da sua casa, um livro que você já leu, uma imagem da internet, uma foto do seu celular, entre outros.
No dia do encontro remoto, o/a adolescente apresentava o que tinha escolhido para representar o que era saúde mental e narrava os motivos de tal escolha. Os encontros tiveram duração de mais ou menos 60 minutos e todos eles foram gravados. Posteriormente, as narrativas de cada participante foram transcritas e analisadas pela pesquisadora e pela orientadora do estudo com a Análise Temática de Bardin, que ocorre por meio da exploração de significados de determinadas temáticas, permitindo, assim, a descoberta de possíveis núcleos de sentido que compõem os dados. Ela se organiza a partir das seguintes etapas: (i) Pré-análise, em que ocorre a organização das ideias iniciais do planejamento da condução do estudo; (ii) exploração do material, realizado a partir dos objetivos do trabalho, em que ocorre a escolha das unidades por meio de possíveis categorias temáticas; e, por fim, (iii) o tratamento e interpretação dos resultados (Bardin, 2016).
Resultados
Participaram do estudo quinze adolescentes estudantes do ensino médio. Desses, quatro se autodeclararam do gênero masculino e onze, do gênero feminino. Oito adolescentes estudam em escolas públicas e sete, em escolas particulares. As idades dos participantes variaram entre 15 e 18 anos: eram oito adolescentes com 15 anos, seis com idades entre 16 e 17 anos e uma adolescente com 18 anos. Em relação ao ano escolar, oito cursavam o primeiro ano do ensino médio, dois cursavam o segundo ano e cinco, o terceiro ano. A Tabela 1 congrega as características aqui destacadas dos/das participantes:
Tabela 1. Caracterização dos/das participantes. Participante
Gênero | Idade | Escola | Série do Ensino Médio | |
Participante 1 | Masculino | 16 | Pública | 3º |
Participante 2 | Feminino | 17 | Pública | 3º |
Participante 3 | Feminino | 15 | Particular | 2º |
Participante 4 | Masculino | 15 | Pública | 1º |
Participante 5 | Masculino | 15 | Particular | 1º |
Participante 6 | Feminino | 16 | Particular | 2º |
Participante 7 | Feminino | 15 | Pública | 1º |
Participante 8 | Masculino | 15 | Particular | 1º |
Participante 9 | Feminino | 15 | Pública | 1º |
Participante 10 | Feminino | 15 | Particular | 1º |
Participante 11 | Feminino | 17 | Particular | 3º |
Participante 12 | Feminino | 15 | Particular | 1º |
Participante 13 | Feminino | 16 | Pública | 1º |
Participante 14 | Feminino | 17 | Pública | 3º |
Participante 15 | Feminino | 18 | Pública | 3º |
Todos apresentaram uma representação para a temática da pesquisa. Alguns se utilizaram de objetos dos mais variados tipos, como uma medalha de um campeonato de futebol, uma carta de uma psicóloga, um caderno ganhado de presente de amigas, um par de patins, uma vitrola, uma bíblia e um livro. Outros adolescentes exploram músicas para representarem a saúde mental, seja uma canção ou um cantor específico. Tiveram aqueles, por outro lado, que mencionaram frases e até mesmo filmes para expressarem o que entendiam por saúde mental. A Tabela 2, logo abaixo, apresenta as representações trazidas por cada participante, ilustradas por trechos de suas narrativas.
A partir da análise das narrativas dos/das adolescentes sobre suas representações, emergiram três temáticas: o que representa saúde mental para adolescentes; a importância dos amigos e a realização de atividades significativas para a promoção da própria saúde mental. Estas serão detalhadas.
A saúde mental retratada por adolescentes: uma pesquisa criativa
Tabela 2. Representações sobre saúde mental trazidas pelos/as adolescentes. Participante
Elucidação Gráfica | |
Participante 1 | […] eu trouxe uma medalha de quando eu jogava futebol. |
Participante 2 | […] tem uma música que eu gosto bastante e que […] é uma música do Shawn Mendes, que é o meu artista favorito, e chama “In my blood”, que ele fala sobre a ansiedade. |
Participante 3 | É uma música, chama “Experience”, do Ludovico. |
Participante 4 | Eu peguei uma frase que eu acho que representa bem, que é tipo, abre aspas: o importante é sempre estar em paz consigo mesmo. |
Participante 5 | […] normalmente, para me sentir bem, né, eu costumo escutar algumas músicas. Normalmente é da Adele [que] eu escuto bastante, e da Billie Eilish também. |
Participante 6 | Então, tipo, eu peguei um exemplo de cada coisa. […] É… de livro, tem um que serve para livro e pra filme, que pra mim é o meu favorito desse tema que é “as vantagens de ser invisível”. E de filme, tem vários. “O mínimo pra viver”, que é mais centrado em anorexia, “Garota interrompida”, tem tudo. “As virgens suicidas”, é mais, não sei, acho que só depressão. E o “Lado bom da Vida”, é [sobre] bipolaridade. E aí de série, tem “Euphoria”, que é a série que mais trata disso e trata de um jeito bom. E “Skins”, que não trata de um jeito muito bom, mas trata e é a minha favorita desse tópico. E de música, adolescente mesmo que trata desses assuntos só a Billie Elish e aí eu peguei uma música dela que fala bastante sobre isso, que chama “Listen Before I go”. Mas também tem outras músicas, mas aí são feitas por adultos, então não sei se você acha relevante ou não. |
Participante 7 | […], mas eu já passei por um tratamento com psicóloga e […] ela me deu uma carta e eu peguei essa carta. |
Participante 8 | […] é uma coisa até que marcou a minha infância, sabe aquela música do “Toy Story”, do “Amigo Estou Aqui”. |
Participante 9 | Eu trouxe um caderno, que é esse daqui que eu ganhei ano passado, de três amigas minhas. […] Essas amigas se juntaram e fizeram esse caderno cheio de coisa, cheio de mensagem tipo… para me dar força, pra… sabe, como se fosse um apoio. |
Participante 10 | […] eu peguei uma vitrola que tem aqui em casa. […] E aí também, que não dá pra pegar,
são tipos músicas. Porque não é uma música em específico. [É] Qualquer música. |
Participante 11 | São fotos minhas e dos meus amigos. |
Participante 12 | Eu trouxe os meus patins. |
Participante 13 | […] eu trouxe a bíblia aqui. |
Participante 14 | Ah, eu trouxe essa foto aqui […] porque eu nunca tive amigos como eu tive com essa turminha aqui [da foto]. |
Participante 15 | Uma frase: […] Saúde mental significa felicidade. Vida feliz é uma vida equilibrada, uma vida que tem alguns sentidos, segundo Aristóteles. |
“Saúde mental significa felicidade, estar bem consigo mesmo” – O que representa saúde mental para adolescentes
Como foi solicitado, os/as adolescentes abordaram, por meio de representações, elementos sobre o que entendiam ser saúde mental. Parte do grupo explorou aspectos que a representavam de forma ampla, como o processo de sentir-se bem consigo mesmo e a sensação de plenitude e bem-estar. Um adolescente utilizou, inclusive, uma frase para representar a sensação de integralidade e o fato de conseguir lidar com todos os acontecimentos da vida. Outra adolescente, também se valendo de uma frase, relacionou a saúde mental ao estado de felicidade e equilíbrio, salientando que não se trata da ausência de alguma doença, seja física ou mental.
Eu peguei uma frase que eu acho que representa bem, que é tipo, abre aspas: o importante é sempre estar em paz consigo mesmo […] A saúde mental pra você ter ela é você ter, mesmo com seus problemas e tudo mais, você às vezes não precisa nem saber lidar, mas saber entender e saber que você não tem uma parcela de culpa nisso. Então aí é você se sentir em paz com os seus pensamentos, com o que você tem, com o que às vezes o que você acha que pode ser nocivo, outras vezes ter alguma coisa que te ajuda é você saber administrar isso, saber ter o controle, a paz sobre isso (Participante 4).
Saúde mental significa felicidade. Vida feliz é uma vida equilibrada, uma vida que tem alguns sentidos, segundo Aristóteles [mostrando a frase]. Foi o que eu estudei em filosofia. Ah, eu acho que a saúde não significa só que tem ausência de doença. Significa no nosso bem-estar interno. Nossos sentimentos, as nossas atitudes, o nosso estilo de vida, coisas assim do tipo. Não tem só a ver com doença ou ausência de doença (Participante 15).
Outros/as participantes abordaram a saúde mental relacionando-a à experiência do sofrimento psíquico. Nesse caso, as representações foram utilizadas para exemplificar as situações vividas nesse processo. Uma participante apresentou uma música de seu cantor favorito que, na sua percepção, retratava uma situação mais realista e não romantizada sobre o sofrimento causado pela ansiedade. Outra indicou várias obras cinematográficas que abordavam situações como anorexia, depressão e bipolaridade, e explicou que quis apresentá-las porque gostava da forma como essas situações eram retratadas de forma mais realista:
[…] é uma música do Shawn Mendes, que é o meu artista favorito, e chama “In my blood”, que ele fala sobre a ansiedade. Foi uma música, inclusive é uma das músicas dele mais conhecidas porque ele retrata bem até, né… não é de uma forma… ele não romantiza, né, como às vezes acontece e eu acho que mostra um lado bem real do que é (Participante 2).
E de filme, tem vários. “O mínimo pra viver”, que é mais centrado em anorexia, “Garota interrompida”, tem tudo. “As virgens suicidas”, é mais, não sei, acho que só depressão. E o “Lado bom da Vida”, é [sobre] bipolaridade. E ai de série, tem “Euphoria”, que é a série que mais trata disso e trata de um jeito bom. E “Skins”, que não trata de um jeito muito bom, mas trata e é a minha
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favorita desse tópico. […] Eu acho que o que eles têm em comum é a abordagem principal sobre esse tema. […] eu gosto do jeito que é retratado (Participante 6).
“Quando estou com essas pessoas eu me sinto melhor” – A importância das relações para a saúde mental
Os/as participantes também se expressaram sobre a importância dos relacionamentos para a manutenção da saúde mental. Uma participante apresentou o suporte que teve no processo de acompanhamento terapêutico com sua psicóloga, levando ao encontro em questão uma carta que recebeu dessa profissional em uma dada ocasião. Outra apresentou o caderno que ganhou de presente de algumas amigas para demonstrar o quanto elas ofereceram suporte em uma fase difícil de sua vida:
Eu não sei se era bem o que você tava procurando, mas eu já passei por um tratamento com psicóloga. […] E aí conforme a gente foi tentando resolver esses problemas, ela me deu uma carta e eu peguei essa carta! […] Ela disse que todas as vezes que eu precisasse era pra ler, que me ajudava (Participante 7).
Eu trouxe um caderno, que é esse daqui que eu ganhei ano passado, de três amigas minhas. Ano passado eu tava numa fase muito ruim. Tipo, péssima. E aí essas amigas se juntaram e fizeram esse caderno cheio de coisa, cheio de mensagem, tipo… pra me dar força, pra… sabe, como se fosse um apoio? E aí quando eu tava mal, sempre que eu ficava, tipo, ruim, eu pegava esse caderno e ajudava muito, tipo, pensar que elas estavam ali perto de mim (Participante 9).
Nas narrativas, é possível observar que os/as adolescentes destacam a importância desses relacionamentos para sua saúde mental, pois os percebem como acolhimento de uma rede de suporte. Outras questões foram ressaltadas, como a convivência com essas pessoas, as diferentes trocas sobre os momentos da vida, assim como o apoio nas situações difíceis. Duas adolescentes utilizaram fotos para representar essas questões, enquanto outro participante trouxe uma música:
Ah, eu pensei nas fotos dos meus amigos porque pra mim é isso que representa saúde mental. […] É que, tipo, quando eu to com eles, eu me sinto muito bem e isso faz bem pra mim. […]. Quando eu to com eles, eu me sinto melhor, sabe? (Participante 11).
Aí eu peguei essa foto especialmente […], por causa do negócio de saúde mental. Porque eu nunca tive amigos como eu tive com essa turminha aqui [da foto], que é a mesma que eu jogo RPG. […] Eu acho que foi um momento que, tipo assim, eu pensei “caraca, eu tenho um grupo de amigos muito bom!” (Participante 14).
[…] eu pensei que, pra mim, meio que foi o mais importante pra eu me manter bem, acho que tanto em escola, quanto em outros quesitos, foram os meus amigos. Acho que foi o que me trouxe saúde mental porque muitas vezes eu tava com dificuldade na escola e algum amigo pedia “ah, você quer fazer tarefa junto comigo?”, aí eu falava “ah, eu topo!”. E me ajudou muito na época. […] então eu trouxe uma coisa bem simples. Sabe aquela música, aquela… é uma coisa até que marcou a minha infância, sabe aquela musiquinha do “Toy Story”, do “Amigo estou aqui”? […] É uma música simples, mas ela representa bem (Participante 8).
“Pra me sentir bem, eu faço alguma coisa que eu gosto” – Saúde mental e realização de atividades significativas
Outros/as adolescentes trouxeram representações associadas à realização de atividades que costumam fazer para promover a própria saúde mental. Eram atividades que tinham um significado particular e, por esse motivo, faziam bem a eles/elas. Um adolescente trouxe uma medalha de um campeonato para representar o quanto gostava de jogar futebol. Outra participante trouxe os patins que costumava utilizar na casa de seu avô como um momento para lidar com situações difíceis. Uma outra adolescente trouxe a bíblia para expressar o quanto a vivência de sua religião ajudou na sua saúde mental:
É porque eu acho que assim: é… saúde mental é […] meio que fazer as coisas que você gosta de fazer. […] Então eu trouxe uma medalha de quando eu jogava […] futebol (Participante 1).
Porque, ah, eu ando [de patins] desde muito pequena, mas sempre quando eu… eu ando todo fim de semana […] no meu avô, ele mora em condomínio e eu vou de final de semana. E… me faz muito bem. Tipo, quando eu tô muito mal é a única coisa, é minha forma de escape (Participante 12).
[…] a primeira coisa que veio na minha cabeça foi isso, porque você não conversaria com essa pessoa se não fosse Deus e tudo isso assim, sabe? […] Saúde mental já veio na minha cabeça que, se eu tô aqui hoje é a bíblia, por conta de Deus, da palavra de Deus e por isso eu trouxe a bíblia aqui (Participante 13).
Como apresentado nos trechos das narrativas, nessa temática, os/as adolescentes trouxeram objetos que representavam diretamente as atividades significativas – a medalha, os patins, a bíblia. Outros/as, por sua vez, indicaram o nome de alguma música ou mencionaram um cantor favorito. As atividades relatadas possuem, para cada um, um significado particular e revelam uma sensação de prazer, bem-estar e tranquilidade:
[…] normalmente, pra me sentir bem, né, eu costumo escutar algumas músicas. Normalmente é da Adele, eu escuto bastante, é… da Billie Eilish também. Isso depende do meu humor. Quando eu tô triste, eu escuto mais da Adele. Quando eu tô mais animado, da Billie Eilish (Participante 5).
É uma música, chama “Experience” do Ludovico. […] Ah, porque sempre que eu tô muito agitada com alguma coisa ou meio mal, pra baixo, eu escuto ela, principalmente pra esvaziar a cabeça. Por isso que eu escuto bastante ela. Ela me ajuda com basicamente tudo (Participante 3).
[…] Eu peguei uma vitrola que tem aqui em casa. […] Porque, por exemplo, quando eu pego pra escutar música na vitrola é um momento que eu fico mais tranquila, que eu paro pra escutar. Que eu não tô fazendo outras coisas, só fazendo isso e, tipo, pra ficar mais calma, essas coisas assim (Participante 10).
Discussão
A estratégia de elucidação gráfica junto aos/às participantes da pesquisa permitiu que eles/elas abordassem suas perspectivas com maior detalhamento a respeito da temática da saúde mental. Através da análise aqui apresentada, observou-se que ela foi abordada de forma ampliada, ao modo como as pessoas se sentem e lidam com a própria vida, não se limitando apenas a ausência de algum transtorno. Mesmo aqueles que relacionaram o tema atrelado ao fenômeno do sofrimento psíquico trouxeram uma concepção abrangente, através das experiências das pessoas, explorando os elementos envolvidos nesse processo.
Esse entendimento se relaciona com os fatores pessoais e contextuais, com o reconhecimento e enfrentamento de desafios e as possibilidades de experimentação abordados no conceito proposto por Fernandes et al. (2022). Trata-se, então, de uma compreensão que parece dialogar com os conceitos que consideram a saúde mental como fenômeno complexo e plural, envolvendo questões relacionados aos sujeitos, mas também às suas vivências, histórias, relações e contextos (Amarante, 2007).
Fernandes et al. (2022) destacam, ainda, que é preciso avançar nas compreensões sobre a temática da saúde mental, considerando diferentes metodologias e contextos infantojuvenis. As sinalizações da literatura também apontam a lacuna dos estudos no acesso às perspectivas de adolescentes sobre o tema e as ações de cuidado (Persson et al., 2017; Rossi et al., 2019).
Nessa direção, os resultados do estudo reforçam que considerar as concepções dos adolescentes sobre essa temática pode oferecer elementos que ajudem no aprofundamento dos estudos de maneira mais contextualizada com suas diferentes vivências. Por isso, é preciso investir em ações e pesquisas com adolescentes, mas que considerem seus diferentes lugares de fala (Ribeiro, 2019). Como aponta Ribeiro, adotar essa perspectiva é analisar os discursos, que são diversos, por meio da localização social daquele sujeito. Esse lugar, que cada sujeito ocupa socialmente conforme suas condições social, econômica, racial etc., acarreta experiências e enviesamentos inerentes a essa posição e, por isso, a promoção da multiplicidade de vozes pode ser uma inversão estratégica do discurso hegemônico (Ribeiro, 2019, p. 53-54).
Considerar os diferentes lugares de falas da população adolescente pode ser, então, um caminho para o fortalecimento e ampliação de conceitos, como o da saúde mental, além de contribuir para o rompimento de perspectivas individualizadoras, biomédicas, medicalizantes e totalmente focadas e baseadas nas experiências dos adultos.
Quando os/as participantes abordam a importância dos relacionamentos para a saúde mental e o quanto eles podem favorecê-la, esses achados também se relacionam com os estudos que apontam o quanto as redes de suporte social proporcionam encorajamento e oferecem subsídios para que se lide com desafios dos mais diversos (Poletto & Koller, 2008). No caso específico de adolescentes, a necessidade de se sentir pertencente ao grupo de amigos é algo crucial na experiência desse momento de vida, já que as relações de amizade exercem influência na forma como adolescentes constroem a própria identidade, além desses grupos possibilitarem a construção de uma rede de apoio, ter pessoas com quem contar, compartilhar experiências e situações difíceis, estabelecer relação de confiança, além de sentir-se respeitado e compreendido (Carvalho et al., 2017; Longaretti, 2020).
Nos modos e moldes de vida da sociedade contemporânea, marcada por processos individualizadores e que centralizam as trajetórias dos sujeitos como resultado exclusivo das suas escolhas, as indicações dos/das adolescentes sobre a importância dos relacionamentos na constituição da saúde mental reforçam a necessidade de considerar esse fenômeno pela ótica social (Mitjavila & Jesus, 2004). A saúde mental é um campo plural, que diz respeito não apenas ao estado mental dos sujeitos, mas de suas
coletividades, o que convoca uma pluralidade de atores e saberes para o seu debate, já que ele se constitui “[…] na complexa rede de saberes que se entrecruzam” – histórias, sujeitos, sociedades e culturas (Amarante, 2007, p.14).
Dessa forma, os resultados da presente pesquisa fortalecem a exigência de não se restringir as discussões desse campo em questões que tratam apenas de elementos individualizados. Na direção do aprofundamento das concepções de saúde mental, deve-se considerar que é imprescindível a análise dos contextos sociocoletivos.
Os/as participantes, ao serem convidados/as a buscarem formas de representar o tema, indicaram que saúde mental é ter a possibilidade de realizar atividades significativas, como algo que traz sentimentos bons, prazer, sensações e experiências positivas, o que, segundo eles/elas, promoveria uma boa saúde mental.
A terapia ocupacional brasileira, em seu percurso histórico, se aproximou das atividades na sua prática profissional. O uso delas nos processos de cuidado da profissão avançou juntamente com as mudanças e alargamento das definições de saúde. Quando se compreende esse conceito de modo abrangente, para além da ausência de um diagnóstico/doença, não como redução de um dano apenas, mas como a produção da vida, isso demanda uma pluralidade de ações tanto no seu cuidado quanto na sua promoção (Castro et al., 2001).
Lima, a partir das indicações de Winnicott (1975 apud Lima, 2006, p. 119), apresenta que uma concepção ampliada de saúde se relaciona com as formas de viver e “[…] com a possibilidade de experimentar a criatividade e com a capacidade de ter experiências culturais”. Dessa forma, os processos de saúde – e de saúde mental – não devem ser apartados de experiências prazerosas, trocas sociais e circulação pelo mundo. Partindo da prática da terapia ocupacional, é possível considerar que realizar atividades pode ser uma forma de ampliar horizontes e criar possibilidades.
As atividades são construções altamente completas. São “pistas inquietantes” porque “[…] são construções sócio-históricas, relacionais, culturais, expressões dos modos de vida; elas envolvem cotidianos e seus desejos, saberes-fazeres, potenciais transformadores próprios; são produção de vida e de mundos” (Cardinalli & Silva, 2021, p. 12). Nesse ponto de produção de vida, a realização de atividades está relacionada ao cotidiano e possibilita a criação de espaços de saúde. Isso ocorre porque, ao realizá-las, os sujeitos têm a oportunidade de fazer escolhas, reconhecerem a si mesmos e se apropriarem do que é seu (Marcolino & Fantinatti, 2014).
Souza (2022) indica que poder vivenciar espaços artístico-culturais podem ser um caminho potente para a promoção da saúde mental da população adolescente. Em uma pesquisa que contou com a participação de seis adolescentes envolvidos em projetos de arte/cultura, eles consideram esses espaços como favorecedores da participação e da expressão cultural, além de que ofertavam a oportunidade de desenvolvimento da cidadania, de processos críticos, da criação de oportunidades e da possibilidade de existir. Essa pode ser uma indicação relevante para futuras investigações e desenvolvimentos de práticas voltadas ao campo da saúde mental das adolescências.
Ao analisar as narrativas dos/das adolescentes participantes da presente investigação, percebe-se que, quando falam sobre fazer diferentes atividades, das mais diversas naturezas possíveis, estão, na verdade, afirmando que estão promovendo, para si, espaços de saúde mental em suas vidas. Esse fato pode acrescentar às concepções de saúde mental outras que abarquem as diversas oportunidades de vivências, que são plurais devido à multiplicidade de
formas de ser/estar no mundo, talvez um reflexo que emerge da imensa gama de contextos socioculturais. A oportunidade de realizar atividades prazerosas, de vivenciar espaços que possibilitem o aumento desse repertório, pode então ser um caminho a ser considerado nas ações de cuidado e promoção à saúde mental, o que também se correlaciona com a imprescindibilidade de, novamente, compreender a temática de forma abrangente.
Por último, é importante reforçar que o presente estudo foi realizado durante a pandemia da COVID-19, contexto que trouxe desafios significativos à vivência de adolescentes, nas suas relações sociais e atividades cotidianas, principalmente devido à privação de convivência presencial com outros pares em seus espaços de circulação (Costa et al., 2021). Por isso, considera-se que o distanciamento social e as restrições impostas possam ter influenciado as perspectivas sobre saúde mental apresentadas pelos e pelas participantes, especialmente no que diz respeito à importância atribuída ao bem-estar, à rede de apoio e à realização de atividades significativas.
Essa conjuntura ressalta como as limitações ao convívio social e no acesso a espaços de lazer e cultura (não apenas em situações adversas como a pandemia) podem impactar negativamente a vida das adolescências. Tal cenário reforça a necessidade de estratégias que promovam o fortalecimento de vínculos, de espaços de expressão e escuta para essa população.
Conclusão
A pesquisa relatada teve o objetivo de identificar a compreensão de adolescentes estudantes de ensino médio sobre saúde mental. Por meio dos resultados, foi possível verificar que os/as participantes compreendiam a saúde mental de forma ampla, relacionada à sensação de bem-estar, às possibilidades de se relacionar e realizar atividades significativas. As indicações dos/das adolescentes reforçam que a saúde mental deve ser compreendida e contextualizada não apenas a condições biológicas dos sujeitos, mas também a partir de suas necessidades, desejos, experiências, contextos e relacionamentos.
Ressalta-se que a investigação apresentou limitações, como a estratégia de amostragem bola de neve ter ocasionado participantes com um perfil e contexto muito semelhantes entre si, não sendo possível considerar outros contextos plurais das adolescências. Mesmo assim, considera-se que o objetivo foi alcançado e que os resultados contribuem com elementos trazidos pelas experiências de pessoas que vivenciam a adolescência, o que pode colaborar na construção de práticas que sejam mais democráticas e participativas no cuidado e promoção à saúde mental dessa população.
Considera-se, ainda, que a técnica de elucidação gráfica se revelou uma estratégia possível e potente no acesso às perspectivas dos/as adolescentes sobre saúde mental. Com ela, foi possível acessar outras vivências e percepções que extrapolaram os discursos sobre a temática. Por isso, acredita-se que a presente pesquisa pode contribuir para o desenvolvimento de ações de cuidado e promoção à saúde mental de adolescentes, mas também em formas possíveis de facilitar a aproximação efetivação junto dessa população, considerando suas singularidades e perspectivas de forma contextualizada.
*Recebido em Jun. 27, 2024; 1ª Revisão em Jul. 9, 2024; Aceito em: Jan. 2, 2025. Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 33, e3886, 2025 | https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO399838861 1
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Contribuição das Autoras
Danieli Amanda Gasparini: concepção do texto, organização de fontes e análises, redação do texto e revisão. Maria Fernanda Barboza Cid: concepção do texto, redação do texto, revisão. Todas as autoras aprovaram a versão final do texto.
Fonte de Financiamento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Código 001.
Autora para correspondência
Danieli Amanda Gasparini e-mail: danigasparini@gmail.com
Editora de seção
Profa. Dra. Adriana Miranda Pimentel
Neuropsicologia: Que Pré – História é Essa?
*Maria Olivia Biava
Engana-se quem acredita que o estudo sobre o cérebro e suas funções se iniciou com a Neuropsicologia. Ele, “o misterioso”, órgão pequeno com “superpoderes” de controle sobre todas as cognições e ainda sobre as emoções. Quer dizer que além de perpassar por construções tangíveis e observáveis ainda circula paralelamente pela complexa área das emoções?
Já na antiguidade, no Egito antigo, papiros descrevem que supõem que casos de traumatismo craniano ou lesões poderiam afetar as funções mentais. Ainda nessa época Hipócrates e Aristóteles já desenvolviam hipóteses um tanto concretas de localização da mente e disputavam de forma lúdica a superioridade ou não do órgão que controlava o centro das emoções e o corpo. Cérebro ou coração? Eis a questão
Alguns avanços foram relatados na Idade Média quando houve a primeira dissecação cerebral com descrição anatômica, e quando René Descartes, por volta de 1.500, propõe que mente e corpo seriam instâncias isoladas, separadas e distintas.
As investigações continuaram tendo as áreas cerebrais e suas localizações ramificadas em estudos pseudocientíficos mas que colaboram com o que atualmente foi consolidado. Entre os séculos XXVII e XIX algumas contribuições relevantes no meio científico são compartilhadas como a descoberta da área de Broca, ligada à produção da fala e a área de Wernick, ligada à produção da linguagem.
Alexandre Luria vem no éculo XX expor uma abordagem mais integrativa, que reunia a neurologia, a psicologia e a teoria cultural-histórica para entender como as funções cognitivas se desenvolviam e propor tratamentos de reabilitação.
No mesmo período são desenvolvidos testes neuropsicológicos para avaliar memória, atenção, linguagem e funções executivas com crescente estudos sobre lesões cerebrais em veteranos de guerra para explicar as funções cognitivas e pela primeira vez se ouve falar em lateralização hemisférica, ou seja, que o cérebro é composto de dois lados e cada um deles se responsabiliza por funções didaticamente separadas, mas se harmonizando e se comunicando em conexões constantes.
Essas contribuições foram trazendo corpo a uma ciência que relaciona as expressões comportamentais aos sistemas cerebrais, isolados, em grupo, integrado ou como um sistema que se retroalimenta e se reorganiza através da plasticidade cerebral.
A partir daí surgem modelos psicométricos e ferramentas como instrumentos de medidas específicas das cognições como linguagem, memória, inteligência, funções executivas, praxia e percepções, atenção e comportamento motor e social.
A Neuropsicologia atualmente estuda a relação do funcionamento do cérebro, comportamento, aprendizagens e emoções. Constitui uma ampla e variada atuação entre Avaliação, Diagnóstico, Pesquisa e Reabilitação e atravessa o desenvolvimento humano desde o seu nascimento até o envelhecimento, percorrendo estudos, atuações e estimulações não invasivas nos Transtornos de Neurodesenvolvimento como T.D.A.H., Autismo, Problemas de Aprendizagem, ou intercorrências que podem ser observadas como fora do padrão esperado em marcos de aquisições ou por doenças específicas no cérebro como Demências, Traumatismos Cranianos ou AVCs.
O Neuropsicólogo realiza um estudo detalhado de como o ser humano aprende ou porquê não aprende e avalia as instâncias de forma conjunta ao histórico- afetivo-social promovendo estratégias para um desenvolvimento e aprendizagem mais otimizados trazendo melhoria global para a vida do paciente neurológico ou psiquiátrico.
Maria Olivia Biava
Neuropsicóloga
Clínica Vivência Neuropsicologia – Guaratinguetá
Psicopedagogia: A Ciência do Apreender – História, Evolução e sua Importância na Educação Inclusiva.
Você sabia que as dificuldades de aprendizagem vão além de “problemas escolares”? A Psicopedagogia é a área que une conhecimento, sensibilidade, escuta e olhares para compreender como cada pessoa aprende, respeitando suas particularidades e promovendo inclusão. Conheça a trajetória dessa profissão essencial nos desafios da educação contemporânea
*Ana Maria Biava
Psicopedagoga
Psicopedagogia: História e Relevância na Educação Contemporânea
A Psicopedagogia é uma área de atuação interdisciplinar que reúne conhecimentos da Psicologia, Pedagogia, Neurociências, Fonoaudiologia e outras áreas afins, com o objetivo de compreender e intervir nas dificuldades de aprendizagem.
A Psicopedagogia representa um olhar cuidadoso para o processo de aprender, reconhecendo que dificuldades escolares não são meramente “problemas do aluno” mas resultado de uma complexa interação entre aspectos cognitivos, emocionais, sociais e culturais.
Breve Histórico da Psicopedagogia
Surgiu nas décadas de 1960 e 1970 na Argentina e França. No Brasil o movimento psicopedagógico ganhou força a partir dos anos 1980, com formação dos primeiros profissionais e a fundação da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), criada em 1980.
Inicialmente voltada para atendimento clínico de crianças com dificuldades de aprendizagens, a psicopedagogia expandiu-se para o campo institucional, atuando em escolas, empresas e hospitais, com uma visão preventiva, além da intervenção terapêutica.
Evolução até os Dias Atuais
Com os avanços da Neurociências e das Tecnologias Educacionais, a Psicopedagogia passou a incorporar novos saberes e práticas, tornando-se uma área essencial na mediação entre o desenvolvimento cognitivo e as exigências do ambiente escolar e social.
O psicopedagogo atua como facilitador do processo de aprendizagem, promovendo estratégias adaptativas e inclusivas, respeitando as diferenças de cada aprendente, calcada em evidencias comprovadas cientificamente.
Sendo assim tornou-se suporte importante para alunos com Transtornos de Aprendizagem, Transtornos do Neurodesenvolvimento, Deficiência intelectual, entre outras condições que demandam um olhar especializado para o ato do aprender.
A Quem se Destina a Psicopedagogia?
A Psicopedagogia atende a um público amplo, desde crianças até adolescentes e adultos que enfrentam dificuldades na aprendizagem (Dislexia, Discalculia, Disgrafia) ou dificuldades relacionadas a fatores emocionais e ambientais.
Alunos com TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, TEA- Transtorno do Espectro Autista e outras condições do Neurodesenvolvimento, necessitando de estratégias individualizadas. Famílias e escolas, que necessitam de orientações para entender e lidar com as dificuldades. Empresas e organizações, em programas de desenvolvimento cognitivo.
A importância da Psicopedagogia está em seu papel de compreender o sujeito em sua totalidade, integrando as dimensões cognitivas, emocionais e sociais.
No cenário educacional atual, com desafios cada vez mais complexos como a inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais, o uso da tecnologia é a atenção à saúde mental, o papel do psicopedagogo tornou-se indispensável. Ele atua como um elo entre a escola, a família e o aluno, ajudando a construir práticas pedagógicas mais justas e eficazes.
*Ana Maria Biava
Professora Especialista em Educação Infantil e Educação Especial.
Psicopedagoga Clínica e Institucional.
Atuando na Área Educacional desde 1970.
Clínica Vivência Neuropsicologia – Guaratinguetá
13.10.2025
PROSEANDO SOBRE FAMÍLIA
*Sonia Maria de Oliveira
*Patrícia Napoleone Giovannetti
*Maria José Lima
@emprosasjc
O Instituto Emprosa é formado por psicólogos especialistas no trabalho com casais e famílias. O objetivo do instituto é promover conversas com grupos em diferentes contextos, sendo o trabalho clínico com as famílias em consultórios, o trabalho com grupos de famílias em instituições ou comunidades, grupos com funcionários de uma empresa e o aprimoramento de profissionais terapeutas de família.
Em todas essas oportunidades, as ações do Emprosa têm o objetivo de trabalhar os relacionamentos visando a dissolução de conflitos, a melhora da comunicação e a construção de relacionamentos mais satisfatórios.
Aqui no espaço CADE, queremos estar com vocês através de um desses braços do instituto, que é o diálogo com a comunidade, através dessa coluna que denominamos “Proseando sobre famílias”. Nossa intenção é promover reflexões sobre temas relevantes para as famílias e a comunidade, contribuindo para a construção de conversas sobre temas sensíveis no cotidiano familiar.
Nessa oportunidade trazemos uma reflexão a respeito desse tema tão atual que é a relação entre a tecnologia e o convívio familiar.
Família e Tecnologia
Inegavelmente a tecnologia, se tornou um elemento central na vida das famílias, transformando profundamente as formas de comunicação, lazer, trabalho e convivência. A relação familiar, que historicamente se estruturava a partir da presença física, do diálogo face a face e da divisão de tarefas domésticas, passou a ser mediada por aparelhos digitais, redes sociais e plataformas de comunicação. Essa transformação traz consigo avanços significativos, mas também desafios que precisam ser analisados com atenção.
Se por um lado, a tecnologia ampliou as possibilidades de interação entre os membros da família, especialmente em contextos de distância geográfica, por outro, distanciou pessoas dentro de casa.
Aplicativos de mensagens instantâneas, videochamadas e redes sociais permitem que pais, filhos e parentes mantenham contato diário, mesmo quando separados por longas distâncias, o que tem sido muito comum atualmente. Além disso, a tecnologia oferece ferramentas educativas e de lazer compartilhado: pais e filhos podem assistir a filmes juntos em plataformas de streaming, jogar online em equipe ou utilizar aplicativos voltados ao aprendizado escolar, fortalecendo vínculos e estimulando a cooperação.
Entretanto, não se pode ignorar os impactos negativos da presença excessiva da tecnologia na vida familiar. O uso abusivo de smartphones e redes sociais frequentemente leva à diminuição do diálogo presencial, substituindo conversas significativas por interações superficiais. Muitos pais relatam dificuldade em estabelecer limites no tempo de tela dos filhos, o que pode gerar isolamento, prejuízos escolares e até problemas de saúde, como sedentarismo e distúrbios do sono. Prejuízos significativos na adolescência que é uma fase de sair da família para estabelecer vínculos extrafamiliares, mas o vício de tela promove um não encorajamento para tal tarefa, visto que parte de sua identidade, foi desenvolvida atras dessa máscara que é o mundo virtual.
Outro importante aspecto é que as tecnologias digitais trouxeram novas formas de conflito: disputas pelo uso dos aparelhos, exposição excessiva da vida íntima em redes sociais e a sensação de que cada membro da família está “preso” em seu próprio mundo virtual, ainda que fisicamente próximos.
Observamos que conversas sobre quem somos nós, o que queremos, o que faremos, que são as chamadas de conversas intimas, não está nos acontecendo porque foram enfraquecidas juntamente com a capacidade de resolução de conflitos e de expressão da afetividade. Podemos citar a criança que vive exposta excessivamente com o uso de tela e sua notória dificuldade de lidar com a frustração, de negociar suas perdas, quando em contato com outras crianças, pois estão acostumadas a “desligar” a cena que desagrada, o que não é possível fazer com o amiguinho.
Assim, observamos que a tecnologia modificou de maneira profunda as relações familiares, criando oportunidades, mas também desafios significativos à tolerância necessária para se conviver. O equilíbrio entre os benefícios e os riscos depende do uso consciente e do estabelecimento de regras e limites compartilhados. Cabe às famílias encontrar estratégias para transformar a tecnologia em aliada da aproximação, sem permitir que ela substitua a presença, o afeto e o diálogo que constituem a essência do vínculo familiar. Em última análise, não se trata de negar a tecnologia, mas de aprender a integrá-la de modo saudável, preservando o espaço da intimidade e da convivência autêntica.
A tecnologia tem produzido transformações significativas nas famílias em diferentes classes sociais, mas os impactos na família pobre assumem características próprias, que envolvem tanto avanços quanto desafios e que é importante evidenciar nessa conversa.
As famílias pobres também ampliaram seu acesso à informação e educação através dos dispositivos digitais e internet, acessando conteúdos educativos gratuitos, cursos online e canais de aprendizagem, que muitas vezes não estariam disponíveis em seu território. Inclusive ampliou a possibilidade de empreender através de seus talentos como cozinhar, consertar objetos e fazer artesanato como forma de vender, gerar renda familiar e abrir alternativas de sobrevivência em contextos de desemprego.
A rede pessoal também poderia ser acionada, através do mundo virtual, para fortalecer rede de apoio e permitir a circulação de pedido de ajuda e solidariedade em situações de vulnerabilidade.
Porém, se sabe que a desigualdade digital também está presente e, muitas vezes o uso é restrito por limitações de dados móveis, baixa qualidade dos aparelhos e falta de infraestrutura de internet, o que mantém a exclusão, agora na esfera digital.
A disputa pelo uso de dispositivos em casas com poucos aparelhos pode gerar tensões entre pais e filhos, especialmente quando o celular é ao mesmo tempo ferramenta de trabalho, estudo e lazer.
O que há de comum em todas as classes sociais, é que a exposição de crianças e adolescentes em contextos de pouca supervisão, os expõem a vulnerabilidade e aos riscos virtuais, como cyberbullying, exploração e contato com conteúdo inadequados, além da substituição de interações presenciais o que empobrece a convivência levando a uma diminuição de diálogos e atividades coletivas familiares.
A família pode se beneficiar muito em seus relacionamentos se conseguir negociar espaços sem telas para todos, oportunidade de conversar e se conhecer em cada momento que vive a família.
Poderíamos pensar na seguinte questão: Será o advento da tecnologia o “responsável” pelo empobrecimento dos vínculos em nossa sociedade atual?
No pensamento sistêmico, que é nossa área de estudo, não se busca tal resposta por se entender que um fenômeno está em constante construção, que variáveis múltiplas influenciam nos contextos em que estamos inseridos e que somos seres em permanente transformação (“nunca entramos no mesmo rio duas vezes” – frase atribuída a Heráclito de Éfeso) também afetando esses contextos.
No pensamento relacional, gostamos de enxergar possibilidades a partir do que está sendo vivenciado, sem negar ou tentar se opor simplesmente a realidade do momento. Talvez uma pergunta que pudesse ajudar a refletir, seria: Como a tecnologia tem chegada a minha família e o que temos feito com a presença dela entre nós? Gostaríamos de transformar essa relação?
Sonia Maria de Oliveira
Patrícia Napoleone Giovannetti
Maria José Lima
@emprosasjc
06.10.2025
QUANDO O CUIDADO É PERFORMANCE: A LINHA TÊNUE ENTRE SAÚDE E ESTÉTICA NAS REDES SOCIAIS
*Giovana Cardoso Bellato
A relação do ser humano com o próprio corpo está longe de ser meramente biológica e apenas individual. O corpo é, antes de tudo, um espaço simbólico onde se cruzam os discursos sociais, culturais, religiosos, políticos e econômicos. A forma como o percebemos, cuidamos, moldamos ou rejeitamos está profundamente relacionada pela maneira em que o sujeito foi construído historicamente diante de sua posição com a cultura. No cenário atual, observa-se uma crescente associação entre o corpo ideal – magro e definido – e a ideia de saúde. Este texto propõe refletir sobre como os discursos veiculados pela mídia impactam nossa relação com nós mesmos, a partir de um levantamento histórico, e quais as possíveis saídas para uma construção de cuidado sob a perspectiva da psicanálise.
O corpo perfeito que se propaga hoje é magro, jovem e definido. Nas redes sociais, a gordura, as estrias e a flacidez são apagadas para dar lugar a corpos moldados por filtros e cirurgias, enquanto o corpo real existe somente fora das telas – e olhe lá. A força desse discurso é tão sutil que vemos uma romantização da saúde e performance como justificativa para a magreza extrema. Sobretudo no último ano, o consumo de medicamentos com fins estéticos, aliado ao discurso do bem-estar, ganhou força e destaque. Canetas emagrecedoras de diversos laboratórios farmacêuticos ficaram fora de estoque quando utilizadas além de sua real finalidade. O uso off label (fora da bula), como no caso da semaglutida (Ozempic), indicada para o tratamento de diabetes tipo 2, foi difundido para fins de emagrecimento antes mesmo de uma liberação formal. Diante desse incômodo, cabe nos perguntarmos: de que forma o discurso entre saúde e estética se cruzaram e ganharam potência na nossa cultura ocidental?
Esse cenário pode ser melhor compreendido a partir de um olhar histórico. Na Grécia Antiga, já se observava uma divisão entre corpo e alma. Platão considerava o corpo transitório e enganoso, enquanto a alma era eterna, ligada ao mundo das ideias. Essa visão dualista reverberou em diversos momentos da história, inclusive a Idade Média, período marcado por uma rígida hierarquia social e moral.
Na época medieval, a sociedade era dividida por ordens sociais rígidas; os indivíduos nasciam e morriam dentro da mesma estratificação, sem possibilidade real de mobilidade e as instituições religiosas dominavam o discurso vigente. Acreditava-se na divisão entre corpo e alma – sendo o corpo fonte de pecado, enquanto a alma poderia ser salva mediante certos sacrifícios. Era necessário sofrer no plano terreno para alcançar a salvação após a morte. Enquanto isso, o desejo deveria ser reprimido, já que era fruto da culpa e do pecado. O autocontrole era rigoroso e imperava diante dos indivíduos que temiam consequências espirituais. Diante disso, a subjetividade e os desejos foram significativamente anulados em detrimento da obediência.
Mais tarde, com a Modernidade e o Renascimento, esse modelo começa a ruir. O sujeito passa a ocupar o centro do saber. René Descartes (1596-1650), com sua máxima “Penso, logo existo”, reafirma a supremacia da razão e da mente sobre o corpo. Após séculos de rigidez, a liberdade de pensamento permitiu o surgimento de diversas correntes filosóficas. Spinoza (1632-1677), por exemplo, foi um dos primeiros a afirmar que corpo e mente são expressões de uma mesma substância – Deus ou a Natureza. Para ele, o corpo deixa de ocupar um lugar passivo: afeta e é afetado, na medida em que se torna papel ativo na constituição do sujeito. Com o avanço da ciência e o nascimento do capitalismo, o corpo vira objeto de observação, cálculo e aprimoramento. A arte vislumbra a harmonia e a proporção; a matemática e o método empírico ganham estatuto de verdade. O corpo, antes sagrado ou pecaminoso, passa a ser racionalizado, disciplinado e, gradualmente, mercantilizado.
Enquanto isso, no século XX, o pensamento neoliberal se fortalece e a ideia central que se vende é de que todos são livres para escolher. Em contraponto, Michel Foucault (1926-1984) nos ajuda a pensar como o corpo se torna alvo dos dispositivos de poder. A disciplina já não se exerce pela força, mas pela norma: a escola, a medicina, o exército, as estatísticas, e os discursos sobre saúde e comportamento moldam sujeitos para que sejam úteis e obedientes. Já Zygmunt Bauman (1925-2017) contribui com seu conceito de modernidade líquida e defende que o sujeito é, ao mesmo tempo, consumidor e mercadoria: vendemos nossa imagem, nosso estilo, nosso corpo. A lógica cartesiana anterior se transforma em “compro, logo existo”. O corpo vira vitrine, promessa de pertencimento. Mas o consumo não preenche o vazio do desejo – apenas o desloca.
Como aponta David Le Breton (1953-presente), vivemos no tempo do corpo prêt-à-porter: moldado sob medida, acessório da identidade, projetado para ser visto, desejado e consumido. O corpo ideal é rascunho eterno – sempre incompleto, sempre em mutação. Deve ser produtivo, estético e controlável. A ideia que se difunde é a de que modificar o corpo é, muitas vezes, modificar a própria vida.
Nas redes sociais, os algoritmos funcionam como forças motoras: produzem comportamentos, reforçam padrões, moldam desejos. Fala-se em autoestima e bem-estar, mas por trás disso uma lógica semelhante à de outros momentos históricos opera: o controle ainda existe, mas de outra forma. Como consequência promove sofrimento, sentimentos de exclusão e não pertencimento – uma normatização disfarçada de escolha.
A sutileza do discurso estético reside na associação entre liberdade e saúde. Falar em saúde parece sempre legítimo. Afinal, quem seria contra o bem-estar? Mas, ao escutarmos mais de perto, percebemos uma estetização silenciosa nesse discurso. “Cuidar de si” vira sinônimo de caber em certos moldes: alimentos “limpos”, corpos “fit”, hábitos “produtivos”. Por trás da aparência do autocuidado, esconde-se uma lógica moralizante: o corpo saudável é o corpo magro, jovem e disposto, no qual quem não se encaixa, falhou.
Essa noção higienizada de saúde desloca o cuidado para o campo da imagem. A saúde deixa de ser experiência subjetiva para tornar-se algo que se vê. Não basta estar saudável – é preciso parecer saudável. A pele deve brilhar, o abdômen marcar, a rotina ser otimizada. O cuidado vira espetáculo; a vulnerabilidade, vergonha. Jovens ganham likes ao exibirem suas rotinas de exercícios, dietas restritas e estilos de vida glamourizados. Além disso, essa lógica escancara desigualdades: não são todos que têm acesso a comida orgânica, tempo livre para treinar ou dinheiro para tratamentos. A cobrança, porém, vem de forma igual para todos: o fracasso recai sempre sobre o indivíduo, como se ele fosse o único responsável por seu corpo, sua estética, sua saúde. A culpa, antes religiosa, agora veste roupa de escolha.
No fim das contas, a saúde tornou-se uma nova versão do ideal. Um novo modo de disciplinar, agora com aparência de liberdade. Um corpo controlado por dentro, pelo discurso, mas com aparência de autonomia. O que deveria ser cuidado virou desempenho. E o cuidado real e subjetivo, aquele que envolve escuta, descanso, falha e tempo, fica para depois.
A psicanálise nos ajuda a compreender a razão desse desarranjo perdurar durante séculos a fio, a partir da sua concepção de que o sujeito se constitui na falta: não somos inteiros, não somos plenos e o desejo nasce justamente desse vazio. E é aí que o discurso neoliberal se encaixa perfeitamente: se ele vende a ideia de que tudo é possível, inclusive sermos completos, o sujeito desconfortável com sua incompletude, compra a ideia de que é possível preenchê-la com um algum objeto, basta adquiri-lo. Essa promessa, ao mesmo tempo que gera desejo, aprisiona. Quando nos valemos de um ideal de corpo, ao buscarmos essas características, almejamos também um corpo que não comporta o vazio e, portanto, nem a dor, nem a insegurança, nem a solidão. Como se, ao alcançar o ideal, fôssemos enfim libertos da angústia de existir.
Sendo assim, a busca pelo corpo ideal revela algo mais profundo: ele se torna recipiente de nossos desejos de aceitação, amor e reconhecimento. Seguindo a lógica normativa predominante: se eu for mais magra, serei mais desejada; se eu parecer saudável, serei mais respeitada; se eu apagar minhas marcas, talvez ninguém veja o que me dói. Molda-se o corpo como se, no fundo, estivéssemos tentando moldar o olhar do Outro.
A psicanálise nos ensina também que o desejo nunca se satisfaz. Justamente por nascer da falta, ele nunca é plenamente preenchido e sofre alguns deslizes. Ao modificarmos o corpo com um fim estético na tentativa de se adequar a um determinado padrão, é possível sentir por um breve instante uma espécie de alívio. Mas logo o olhar se realoca, a falta torna a dar as caras, e a corrida recomeça. O que percebemos, então, é que não é o corpo que precisa mudar, mas sim o lugar que ele ocupa em relação ao discurso.
Cada corpo carrega uma história subjetiva, marcada por potências, limites, resistências… é nesse território complexo que a vida se dá, sem garantias de perfeição ou controle. Uma das possibilidades que se desdobra no processo de análise é justamente a de perceber que, ao se confrontar com suas falhas, limites e vulnerabilidades, o sujeito abre espaço para a construção de algo singular. Não se trata de um conformismo passivo, mas de uma forma ativa de cuidado consigo: uma abertura para acolher os próprios afetos e, com isso, se reposicionar no mundo de modo mais íntegro e potente. Trata-se de um outro olhar sobre si – e, junto dele, sobre as fronteiras que compõem sua existência. Fronteiras que podem se desenhar na pele, na gordura, ou em tantas outras camadas do corpo vivido. Afinal, cuidar de si não é corrigir o corpo. É poder estar nele.
*Giovana Cardoso Bellato
Psicóloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Giovana Cardoso Bellato é especialista em Psicanálise: Teoria e Técnica (UNIVAP). e atualmente cursa pós-graduação em Transtornos Alimentares, Psicanálise e Cultura pelo Instituto ESPE. Atua em consultório particular em São José dos Campos e se dedica a investigar as intersecções entre psicanálise, cultura e sociedade, abordando questões de subjetividade e os impactos da contemporaneidade sobre as relações humanas.
A ESCRITA COMO UM RECURSO AOS IMPASSES DA ADOLESCÊNCIA[1]
*Marisa Nubile
A adolescência, como sabemos, não é um conceito psicanalítico; é muito mais uma construção datada que, Segundo Perrot (1985), nasce no início do século dezenove a partir da Revolução Francesa e da proclamação dos direitos dos homens.
Lembremos que Lacan se refere à adolescência como um momento traumático (trou-matisme), na medida em que “faz furo (trou) no real” (LACAN, 1974 – 2003, p. 558).
Isso significa que o “despertar da primavera” irrompe um gozo que o sujeito não compreende e não sabe como tratar. As ficções infantis não são suficientes para fazer face ao assalto pulsional na adolescência. Neste momento, o sujeito se depara com muitas rupturas: o corpo se altera e há uma mudança da imagem corporal. Além disso, é um momento significativo e doloroso de desligamento dos pais (FREUD, 1905). Há uma queda do ideal que constituía a relação parental que repercute na relação com as identificações. Ou seja, as antigas amarrações não operam como antes e o sujeito se vê confrontado com o furo no saber.
Ir em direção à adolescência significa, então, ir em direção aos impasses e soluções encontradas pelos sujeitos diante desse real que se impõe e de onde ele é convocado a realizar um grande trabalho psíquico.
Que recursos lançará mão?
Em Mal estar na civilização, Freud (1930/1980 p. 124) remarca que “separar-se da família torna-se uma tarefa que todo jovem se defronta e a sociedade frequentemente o auxilia na solução disso através de ritos de puberdade e de iniciação”. Em outro texto, Contribuições para uma discussão acerca do suicídio (1910), ele discute a importância de o jovem buscar referências fora da casa e cita o colégio como um lugar que poderia oferecer apoio, amparo e instigar o interesse pela vida exterior.
Em nossa contemporaneidade, estes elementos trazidos por Freud estão postos em xeque. Hoje constatamos que não é mais o ideal do Outro (caldo cultural em que sujeito está imerso) que orienta a vida das pessoas e sim o gozo retirado de objetos postos no mercado. Isso traz consequências sérias, principalmente para o jovem que está neste momento de ruptura e é convocado a realizar remanejamentos importantes.
A questão é que os objetos de consumo não tamponam o vazio existencial do sujeito humano. O importante, então, para além dos objetos postos no mercado, é o sujeito encontrar uma maneira de continuar a desejar no momento em que está diante de uma crise do desejo. (SEYNHAEVE, 2011). Lembremos que este tempo de compreender que é a adolescência[2], significa a passagem da posição infantil onde ele é desejado para a posição desejante. Para isso, terá que inventar soluções.
É dentro deste panorama que trago para discussão a escrita como um recurso possível. Não é uma receita a ser proposta como saída generalizada, há que tomá-la no um a um e dentro da dimensão que a escrita pode vir a ocupar na vida de cada sujeito.
De qualquer forma, fato é que encontramos exemplos de várias pessoas, algumas reconhecidas na cena literária, que escreveram neste período de suas vidas através de diários, cadernos e blogs.
Ao assistir ao documentário brasileiro Pro dia nascer feliz (2006), do diretor João Jardim, chamou minha atenção o depoimento de uma jovem. Talvez ela nos ensine algo sobre a escrita na adolescência. Em meio a pausas e olhares, ela nos diz:
– Antes, eu chegava da escola e ficava deitada o dia inteiro, só tomava banho, cama e dormia. (…) morrer seria mais fácil para mim, mas como disse a professora Celsa, se eu morrer eu vou sentir a dor eternamente (…) não dá mais pra morrer. Se alguém dissesse pra mim qualquer coisa que me magoasse eu xingava todo mundo, não sabia como me expressar. Depois que entrei no Fanzine tudo melhorou.
No meio de uma pilha de papéis soltos, a jovem escolhe um texto de sua autoria e lê:
– “Simplesmente, sinto que as ideias dilaceram minha súbita nóia, como se as letras formassem minha sentença. Pense e apenas pense: sou mais do que isso, sou a cômica agonia que dilata, dilata. O mundo não é o bastante para mim, tudo é apenas o pouco, o nada. Fico apenas em silêncio, dizendo com ele tudo e com as palavras nada”.
– Soube que havia pessoas que choravam com os poemas e ficava pensando: será que eu posso fazer alguém chorar com o que eu escrevo? Para mim é tão besta o que escrevo, aí alguém chorar é o maior… não sei!
Como podemos observar, ela começa falando sobre sua adolescência e desta crise do desejo: morrer seria mais fácil para mim. Momento delicado, onde o gosto pela vida se esvanece podendo levar o adolescente a querer se desvencilhar do desgosto de si através de condutas de risco e até de uma passagem ao ato. (LACADÉE, 2007)
É diante deste contexto que, para alguns, “o recurso à carta e à escrita de um diário pode ajudar a fixar o gozo a mais (en-trop). (…) Representa então a tentativa de circunscrever a relação com o mundo e com o gozo, vindo no lugar do furo no saber”. (LACADÉE, 2007, p. 89).
Foi bem esse o caso da jovem do documentário que encontrou, na escrita poética, uma maneira de traduzir o exílio de si mesma. Diante do desamparo pela ausência de palavras que pudessem nomear aquilo que era percebido como um vazio, ela escreve: fico apenas em silêncio, dizendo com ele tudo e com as palavras nada. Em última instância, ela toca em uma questão que concerne a todo ser falante, ou seja, de que a palavra não dá conta de representar o irrepresentável. Por outro lado, é usando a palavra que essa jovem encontra recurso para contornar esse impossível.
Mas, não qualquer palavra, não de qualquer maneira. Isso significa que a professora, ao oferecer um espaço de acolhimento[3]daquilo que era produzido pelos alunos, permitiu que um canal de expressão fosse aberto e que a invenção fosse aceita: eu xingava todo mundo, não sabia como me expressar. Depois que entrei no Fanzine tudo melhorou. Se os jovens são fabricantes de novas maneiras de se expressar, esta professora soube fabricar iscas para que seus alunos (ou alguns deles) pudessem e quisessem participar do jogo da linguagem.
No caso do testemunho da jovem, o jogo com as letras na feitura de poemas, além de apaziguá-la, pois contornou e fixou esse gozo errante e excessivo: sou a cômica agonia que dilata, também lhe possibilitou uma via possível para fazer laço social: Soube que havia pessoas que choravam com os poemas.
Ainda com Lacadée (2007, p.90), podemos dizer que “lá onde alguns fazem curto circuito no processo de tradução, a escrita teve (para esta jovem) função de suplência”, ou seja, usou este recurso como um arranjo possível diante do desarranjo próprio à adolescência.
Referências
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980
FREUD, Sigmund. Contribuições para uma discussão acerca do suicídio (1910). In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980
____. O mal estar na civilização (1930). In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980
LACAN, Jacques. O despertar da primavera (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003
PERROT, Michelle. La fin du charivari. In: L`Âne, no. 22. Jul-set, 1985.
LACADÉE, Philippe. L’éveil et L’exil. Nantes, Editions Cécile Defaut, 2007
SEYNHAEVE, Bernard. Lʼadolescence au siècle de lʼobjet. Disponível no site: http://pontfreudien.org/content/bernard-seynhaeve-ladolescence-au-sciecle-de-l’objet
SILVA, Rômulo Ferreira. Argumento do Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Adolescência, a idade do desejo, 2016. Disponível no site: http://www.encontrobrasileiro2016.org/encontro-1
[1] Partes do texto apresentado na Jornada de Psicanálise do Instituto de Psicanálise da Bahia. Salvador, 2016
[2] “Jacques-Alain Miller articula a adolescência com o Tempo Lógico de Lacan, ao estabelecer a puberdade como o instante de ver, que antes era marcado pelos ritos de passagem. Do corte que provocava o aparecimento de uma metáfora da puberdade, abriu-se um intervalo que é o tempo para compreender e que chamamos adolescência”. (SILVA, 2016).
[3] O filme mostra que a professora de língua portuguesa, Celsa, trabalha com seus alunos em um ateliê para criar um Fanzine. Trata-se de um recurso onde um grupo de alunos cria um pequeno magazine distribuído e divulgado na comunidade escolar ou no bairro. O tema é sugerido ou proposto e os textos e ilustrações podem ser recolhidos tanto de fontes externas como da produção textual e gráfica dos próprios alunos.
*Marisa Nubile
Psicóloga e psicanalista. Associada ao Clin-a, Instituto da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) seção São Paulo. Doutora em Psicologia e Educação pela USP.
NÃO FAZEMOS SENTIDO SOZINHOS: REFLEXÕES SOBRE O SUJEITO DA ATUALIDADE E SUAS RELAÇÕES.
*Elza Regina Batocki
Vivemos um momento histórico delicado em se tratando de processos de subjetivação. Os avanços tecnológicos seguem avançando em todas as direções, abreviando tarefas e estreitando caminhos. No entanto, cresce a cada dia a ‘falta de tempo’ para as experiências mais simples e essenciais para a constituição da subjetividade. Na era da utilidade, sobram-nos os recursos e falta-nos a sabedoria para fazermos uso destes.
Para a psicanálise o sujeito se constitui a partir de seus relacionamentos e das marcas destes herdadas, sendo, portanto, dependente do seu meio. Estamos continuamente incorporando o ambiente que nos circunda e nos inscrevendo nele. A realidade interna, como diria Winnicott, se sustenta na realidade compartilhada e vice-versa. Porém, os avanços nos conhecimentos e tecnologias tem sido suficiente para nos tornar mais sábios e preparados para vivermos em grupo?
Quando se busca uma definição de cultura para o momento histórico em que nos encontramos, percebemos o quanto o processo de subjetivação tem se mostrado difuso e indefinido.
Pergunto a um garoto de 10 anos sobre o que é cultura para ele e sua resposta muito simples é a seguinte:
“A Cultura tem a ver com aquilo que é específico de um ‘lugar’ (da história daquele lugar), é tudo que fica do costume daquele povo. É como uma Identidade. Aliás a Identidade precisa de uma Cultura. ”
Mas o que pensar sobre o volume e a qualidade dos conteúdos que temos produzido e consumido nos dias atuais e nas condições que temos criado nossas relações?
A cultura não está relacionada a posse de conhecimentos e saberes, não havendo, portanto, pessoa inculta, nos aponta Chauí. Assim como demonstra a origem dessa palavra, (colere) cultura está relacionada ao ato de cuidar, e cita alguns exemplos como a puericultura (cuidar das crianças) e agricultura (cuidar das plantas). Para esta, refere-se à capacidade de se relacionar com o ausente, com os símbolos.
Nesse sentido, poderíamos pensar que a cultura fundamenta a identidade de um povo, inscrita através de hábitos (tradições, ritos) que mantém a ligação de um sujeito com seu grupo? Ainda que inconscientemente?
Quando a mesma pergunta é feita a um adulto, nos deparamos com os ruídos decorrentes dos excessos de informações e associações em torno do seu significado, e por consequência a perda do seu sentido.
Esse é um risco que corremos ao pensar que o acúmulo de informações nos garante algum tipo de autoconhecimento. Pelo contrário, o que parece mais comum é um apagamento das culturas e identidades.
Estamos jogados inegociavelmente num ritmo frenético, repleto de urgências, que nos mantém ocupados demais para ‘pensar’ o que estamos vivendo. Desse modo, estamos perdendo a capacidade de viver a experiência presente. Em seu livro ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, Krenak comenta que é “como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido”, nos alertando para um afastamento da natureza. Estamos assistindo um afastamento da natureza humana e ficando cada dia mais semelhantes ao funcionamento maquinico / mecânico.
Quando Freud criou a Psicanálise o mundo era algo diferente daquilo que experimentamos hoje. A realidade cultural e consequentemente os enquadres daquela época ficavam em torno de estruturas neuróticas.
Para alguns autores mais recentes, como Green, o sujeito moderno caminha pela via da não-neurose. Para ele, esses casos-limite, apresentam um empobrecimento das representações, dificultando a simbolização. Sem representação e processo simbólico o sujeito fala, atua, expressa mas não comunica nada. Pois sem essas condições psíquicas não há ‘lugar’ para o desejo inconsciente.
As condições de vida contemporânea atropelam os processos mais importantes para integrar um sujeito, ainda que este funcione bem socialmente. E as novas patologias nos convocam a olhar para sentidos perdidos (cito como exemplo as demências como Alzheimer) ou para a emergência de criá-los (como os autismos).
O que podemos enxergar dos sujeitos e suas relações quando somos freados por experiências desse tipo dentro do nosso cotidiano atribulado?
A Psicanálise se interessa pela interpretação dessa realidade, que é subjetiva e coletiva ao mesmo tempo.
O lugar do analista hoje vai além da escuta neutra e cuidadosa, é preciso chegar mais perto para ouvir melhor e quando preciso, construir junto uma nova linguagem.
REFERENCIAS
Chauí, M. (2018) ‘Escritos de Marilena Chauí / O que é cultura?’ Grupo Autentica – in: Escritos de Marilena Chaui | O que é cultura?
GREEN, A. (1974). ‘O analista, a simbolização e a ausência no contexto analítico’. A loucura privada: psicanálise de casos-limite. São Paulo: Escuta, 2017
Krenak, A. (2019) ‘Ideias para adiar o fim do mundo’ – São Paulo – Companhia das Letras, 2019.
Winnicott, W.D (1971) ‘A localização da experiência cultural’. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975
*Elza Regina Batocki
Graduação em Psicologia pela UniSal – Lorena (2008), pós-graduação em Clínica Psicanalítica pela mesma universidade (2010), formação básica em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientae – GTEP de Lorena (2017)
15.09.2025