ARTIGO DA SEMANA

 “Os rituais e sua importância para a infância”

  

*Patricia Napoleone Giovannetti
Instituto Emprosa

“As crianças que resolvem não crescer

 não crescem nunca.

Elas devem ter um mistério dentro de si.

  Então, mesmo depois de grandes,

 comovem- se com as coisas pequenas;

um raio de sol ou um floco de neve”

ALEMAGNA, B. (2019)

 in “O que é uma criança?”

             É chegado o final de ano e com ele, inevitavelmente, pensa- se em Natal e Ano Novo, duas datas “onipresentes” em nossa cultura ocidental, latino-americana, brasileira.

            Não há como não pensar nessas comemorações, pois o comércio, a mídia e a sociedade em geral nos lembram das festividades, gostemos delas ou não, sejamos religiosos ou não, enfim, independentemente do significado que possamos atribuir a essas datas.

            Em geral, quando se pensa nesta época do ano, a ideia de família, reunião familiar ou lembranças do que foi vivido com entes queridos no passado vêm à tona. A imagem de crianças felizes, normalmente sendo presenteadas, esperando pela figura de Papai Noel e brincando são atribuídas a esse período.

            Inúmeros são os significados, sensações e sentimentos que podem ser vividos nesse contexto, variando de pessoa para pessoa e dentro de cada família.

            Elegemos refletir sobre a infância, de maneira mais ampla que apenas durante as festividades de final de ano, pensando em como os rituais sociais e familiares reverberam nessa fase da vida e que marcas podem deixar em sua história.

             Sabe-se que os rituais de maneira geral permeiam a história da civilização e estiveram presentes em diferentes culturas, povos e continentes, mesmo que com características próprias e simbologias diversas. Interessante notarmos o quanto esse fenômeno permanece entre nós até hoje, levando- nos a algumas reflexões como: para que serve um ritual, quais seus benefícios e por que se mantém como tradição entre nós?

            O presente texto não tem como objetivo esgotar tais questões, mas propiciar um momento de reflexão, talvez até uma pausa em um período em que muitas vezes nos vemos demasiadamente atribulados com compromissos e prazos para cumprir antes que o ano corrente termine.

             Ritual, segundo o dicionário Oxford, seria “um conjunto das regras socialmente estabelecidas que devem ser observadas em qualquer ato solene; cerimonial”.

 Para Jung (1986), serviria para integrar vivências inconscientes com as conscientes, ajudando no processo de desenvolvimento psíquico do indivíduo. Por isso os chamados ritos de passagem, como nascimento, casamento, morte, etc, atuariam como “continentes” e facilitadores desses processos de transição. Pode-se pensar, a partir dessa definição, o quanto os rituais teriam a função de organizar vivências importantes no nível familiar e coletivo também.

            Para Walsh (2016), o ritual pode marcar tanto as boas experiências quanto as ruins, quando um grupo reúne-se para lembrar a morte de um ente querido, por exemplo.  A autora fala de vários aspectos, funções e usos do Ritual, como sendo principalmente elemento de cura e transformação, ajudando como parte de entendimento de situações delicadas ou conflituosas. Citando um exemplo, estabelecer uma conversa formal, em um local diferente do frequentado pelos envolvidos, com regras de conversação definidas para esclarecer situações que parecem ser de difícil solução.

            O Ritual, conforme iniciamos nosso texto, muitas vezes aparece no momento de celebração: “O tema da celebração dos rituais anuncia quem somos e em quem podemos nos tornar e nos conecta com o que veio antes de nós e com nossa comunidade mais ampla. Todas as culturas possuem rituais de celebração” (WALSH, 2016, pág. 489).

            Rituais também servem para falarmos de perdas, algo inerente à vida. Eles nos auxiliam a olhar para a dor e com isso poder transmitir histórias para os que vieram depois, ajudando a crias memórias. De qualquer maneira, como diz Walsh (2016), o ritual fala de relacionamentos.

            Pensando no ciclo da vida, nas mudanças em que cada geração vai trazendo, nas mudanças culturais e sociais de cada época, como podemos harmonizar as tradições, crenças e valores de cada família de origem quando se inicia um novo núcleo familiar principalmente quando as crianças, com suas demandas e novidades, estão presentes?

            A contemporaneidade trouxe muitas mudanças e, consequentemente, desafios para a relação pai e filhos. Saímos de um modelo em que a hierarquia era mais marcada e observada, em que pais (ou até normalmente apenas a figura paterna, masculina) “mandavam e filhos obedeciam” para a construção de uma relação mais igualitária (LIMA, 2014), temos muito mais acesso a bens de consumo, as relações estão mais monetizadas (De La Taille, 2009) e, obviamente, como não poderíamos deixar de citar, a tecnologia entrou na intimidade de todas as famílias. São inúmeros os novos fatores que agora permeiam os vínculos familiares trazendo muitas dúvidas e inseguranças para a geração de pais atual.

           Concordamos que seja desafiador equilibrar individualidades, limites, pertencimento a grupos externos, como escola e amigos, famílias de origem e suas tradições em um mundo em que as regras parecem mudar a todo instante. Podemos pensar que os rituais podem ajudar a organizar e fortalecer os valores caros às famílias. Um ritual, para ser efetivo, deve ser cheio de significado e propósito e pode ser uma boa oportunidade para as famílias entrarem em contato e refletirem sobre o que é importante em seu núcleo familiar.

           Podemos citar como exemplo o ritual de presentear. Independentemente se trata- se de um aniversário, Natal, a brincadeira do amigo- secreto, enfim, o ato de dar algo para alguém deveria ser transmitir meu carinho para outrem na forma de um objeto ou artigo abstrato como um poema, um passeio, homenagem, etc, ou seja, algo contendo significado. Algo que me remeta àquela pessoa específica e que a fará também lembrar de mim na forma de carinho recebido.

           Atualmente, vemos aniversariantes de todas as idades, noivos e outros anfitriões exigindo presentes específicos de seus convidados, crianças tendo que levar lembrancinhas de festas de aniversário e adultos concordando que essa vontade seja imperiosamente satisfeita. Ouvimos muitas vezes na clínica pais que bonificam filhos monetariamente ou com objetos de desejo SE os filhos conquistarem isso ou aquilo (geralmente boas notas escolares, bons comportamentos, bons desempenhos em esportes, músicas, etc), tendo um sentido muito mais de chantagem do que parceria. Parentes que presenteiam com dinheiro as crianças e adolescentes pelo simples motivo de “não saber do que ele gosta” ou “ele faz o que quiser e fica satisfeito”. Escutamos famílias muito preocupadas com o destino de férias de final de ano, que devem sempre atender expectativas altas no sentido de serem locais luxuosos ou em outros continentes sem necessariamente terem valor afetivo, cultural, histórico ou familiar.

           Poderíamos refletir a respeito do quanto o presentear poderia ser uma oportunidade de se conhecer a pessoa que receberá, o quanto poderia ser interessante pensar nos jeitos, gostos e interesses daquela pessoa. Em como seria rico conversar com as crianças sobre o valor das trocas, sobre dinheiro em si, sobre como se quer gastar, sobre doar para quem não tem, doar por doar… Seria também possibilidade dos pais, avós e outros membros da família contar sobre seus sonhos de presentes na infância, sobre como comemoravam, quais eram os costumes e tradições. São várias as possibilidades de presentear fazendo disso um verdadeiro ritual, a partir do momento que se faz junto, podendo ouvir- se verdadeiramente.

           A partir desse pequeno exemplo do presentear, podemos refletir sobre o que estamos transmitindo para as crianças quando o valor monetário dos objetos, festas e viagens são o principal norteador de nossas escolhas. Esquecemos do singelo e, mais ainda, do quanto é no simples, como com boas conversas, olhos nos olhos e escuta real que uma criança vai se formando e, principalmente, torna- se capaz de ver a si mesma e os outros.

           Pensando que, conforme Walsh (2016), “os rituais diferem de meras rotinas em nossa vida; eles contêm significados e expressam valores”, imbuídos de símbolos que trazem união, significado, marcando a diferença entre um momento especial e um momento comum, haveria a possibilidade de cada família criar rituais a partir de suas próprias crenças, histórias de antepassados e valores que se queiram transmitir: até via o jantar no final do dia, em que a família poderia combinar de se reunir, sem uso de telas, para trocas a respeito do dia, ou conversas mais inspiradoras, fazendo um verdadeiro corte do que foi vivido exteriormente e do que se quer dentro de casa.

            O tempo da criança passa mais devagar (ou deveria, ainda é possível em nossa sociedade?). Esse olhar que é atento aos ritmos da vida, da natureza, aos fenômenos do sensível que desvela as mudanças sutis inerentes a vida talvez possa servir de inspiração para olharmos para além de nossas obrigações e funções e propiciar também momentos mais introvertidos com mais significados para todos da família.

 

        

REFERÊNCIAS

 ALEMAGNA, B. O que é uma criança?. WMF Martins Fontes, São Paulo, 2010.

 De LA TAILLE, Y.  Formação ética. Do tédio ao respeito de si. Editora Artmed, Porto Alegre, 2009.

 JUNG, C.G. The Archetypes and the Collective Unconscious, collected works, vol. XVI, Routledge  & Kegan, London, 1986.

 LIMA, M. J. Viver em família na contemporaneidade. Nova perspectiva sistêmica, no. 49. Rio de Janeiro, 2014. p.88-99.

 RITUAL. In: OXFORD LANGUAGES. Oxford Press. Disponível em: www.google.com.br. Acesso em: 05/12/2025.

 WALSH, F. Processos normativos da família: Diversidade e complexidade, 4ª. Edição. Editora Artmed, Porto Alegre, 2016.

15 dezembro 2025