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PROSEANDO SOBRE FAMÍLIA

 

*Sonia Maria de Oliveira
*Patrícia Napoleone Giovannetti
*Maria José Lima
@emprosasjc

O Instituto Emprosa é formado por psicólogos especialistas no trabalho com casais e famílias. O objetivo do instituto é promover conversas com grupos em diferentes contextos, sendo o trabalho clínico com as famílias em consultórios, o trabalho com grupos de famílias em instituições ou comunidades, grupos com funcionários de uma empresa e o aprimoramento de profissionais terapeutas de família.

Em todas essas oportunidades, as ações do Emprosa têm o objetivo de trabalhar os relacionamentos visando a dissolução de conflitos, a melhora da comunicação e a construção de relacionamentos mais satisfatórios.

Aqui no espaço CADE, queremos estar com vocês através de um desses braços do instituto, que é o diálogo com a comunidade, através dessa coluna que denominamos “Proseando sobre famílias”. Nossa intenção é promover reflexões sobre temas relevantes para as famílias e a comunidade, contribuindo para a construção de conversas sobre temas sensíveis no cotidiano familiar.

Nessa oportunidade trazemos uma reflexão a respeito desse tema tão atual que é a relação entre a tecnologia e o convívio familiar.

Família e Tecnologia

Inegavelmente a tecnologia, se tornou um elemento central na vida das famílias, transformando profundamente as formas de comunicação, lazer, trabalho e convivência. A relação familiar, que historicamente se estruturava a partir da presença física, do diálogo face a face e da divisão de tarefas domésticas, passou a ser mediada por aparelhos digitais, redes sociais e plataformas de comunicação. Essa transformação traz consigo avanços significativos, mas também desafios que precisam ser analisados com atenção.

Se por um lado, a tecnologia ampliou as possibilidades de interação entre os membros da família, especialmente em contextos de distância geográfica, por outro, distanciou pessoas dentro de casa.

Aplicativos de mensagens instantâneas, videochamadas e redes sociais permitem que pais, filhos e parentes mantenham contato diário, mesmo quando separados por longas distâncias, o que tem sido muito comum atualmente. Além disso, a tecnologia oferece ferramentas educativas e de lazer compartilhado: pais e filhos podem assistir a filmes juntos em plataformas de streaming, jogar online em equipe ou utilizar aplicativos voltados ao aprendizado escolar, fortalecendo vínculos e estimulando a cooperação.

Entretanto, não se pode ignorar os impactos negativos da presença excessiva da tecnologia na vida familiar. O uso abusivo de smartphones e redes sociais frequentemente leva à diminuição do diálogo presencial, substituindo conversas significativas por interações superficiais. Muitos pais relatam dificuldade em estabelecer limites no tempo de tela dos filhos, o que pode gerar isolamento, prejuízos escolares e até problemas de saúde, como sedentarismo e distúrbios do sono. Prejuízos significativos na adolescência que é uma fase de sair da família para estabelecer vínculos extrafamiliares, mas o vício de tela promove um não encorajamento para tal tarefa, visto que parte de sua identidade, foi desenvolvida atras dessa máscara que é o mundo virtual.

Outro importante aspecto é que as tecnologias digitais trouxeram novas formas de conflito: disputas pelo uso dos aparelhos, exposição excessiva da vida íntima em redes sociais e a sensação de que cada membro da família está “preso” em seu próprio mundo virtual, ainda que fisicamente próximos.

Observamos que conversas sobre quem somos nós, o que queremos, o que faremos, que são as chamadas de conversas intimas, não está nos acontecendo porque foram enfraquecidas juntamente com a capacidade de resolução de conflitos e de expressão da afetividade. Podemos citar a criança que vive exposta excessivamente com o uso de tela e sua notória dificuldade de lidar com a frustração, de negociar suas perdas, quando em contato com outras crianças, pois estão acostumadas a “desligar” a cena que desagrada, o que não é possível fazer com o amiguinho.

Assim, observamos que a tecnologia modificou de maneira profunda as relações familiares, criando oportunidades, mas também desafios significativos à tolerância necessária para se conviver. O equilíbrio entre os benefícios e os riscos depende do uso consciente e do estabelecimento de regras e limites compartilhados. Cabe às famílias encontrar estratégias para transformar a tecnologia em aliada da aproximação, sem permitir que ela substitua a presença, o afeto e o diálogo que constituem a essência do vínculo familiar. Em última análise, não se trata de negar a tecnologia, mas de aprender a integrá-la de modo saudável, preservando o espaço da intimidade e da convivência autêntica.

A tecnologia tem produzido transformações significativas nas famílias em diferentes classes sociais, mas os impactos na família pobre assumem características próprias, que envolvem tanto avanços quanto desafios e que é importante evidenciar nessa conversa.

As famílias pobres também ampliaram seu acesso à informação e educação através dos dispositivos digitais e internet, acessando conteúdos educativos gratuitos, cursos online e canais de aprendizagem, que muitas vezes não estariam disponíveis em seu território. Inclusive ampliou a possibilidade de empreender através de seus talentos como cozinhar, consertar objetos e fazer artesanato como forma de vender, gerar renda familiar e abrir alternativas de sobrevivência em contextos de desemprego.

A rede pessoal também poderia ser acionada, através do mundo virtual, para fortalecer rede de apoio e permitir a circulação de pedido de ajuda e solidariedade em situações de vulnerabilidade.

Porém, se sabe que a desigualdade digital também está presente e, muitas vezes o uso é restrito por limitações de dados móveis, baixa qualidade dos aparelhos e falta de infraestrutura de internet, o que mantém a exclusão, agora na esfera digital.

A disputa pelo uso de dispositivos em casas com poucos aparelhos pode gerar tensões entre pais e filhos, especialmente quando o celular é ao mesmo tempo ferramenta de trabalho, estudo e lazer. 

O que há de comum em todas as classes sociais, é que a exposição de crianças e adolescentes em contextos de pouca supervisão, os expõem a vulnerabilidade e aos riscos virtuais, como cyberbullying, exploração e contato com conteúdo inadequados, além da substituição de interações presenciais o que empobrece a convivência levando a uma diminuição de diálogos e atividades coletivas familiares.

A família pode se beneficiar muito em seus relacionamentos se conseguir negociar espaços sem telas para todos, oportunidade de conversar e se conhecer em cada momento que vive a família.

Poderíamos pensar na seguinte questão: Será o advento da tecnologia o “responsável” pelo empobrecimento dos vínculos em nossa sociedade atual?

No pensamento sistêmico, que é nossa área de estudo, não se busca tal resposta por se entender que um fenômeno está em constante construção, que variáveis múltiplas influenciam nos contextos em que estamos inseridos e que somos seres em permanente transformação (“nunca entramos no mesmo rio duas vezes” – frase atribuída a Heráclito de Éfeso) também afetando esses contextos.

No pensamento relacional, gostamos de enxergar possibilidades a partir do que está sendo vivenciado, sem negar ou tentar se opor simplesmente a realidade do momento. Talvez uma pergunta que pudesse ajudar a refletir, seria: Como a tecnologia tem chegada a minha família e o que temos feito com a presença dela entre nós? Gostaríamos de transformar essa relação?

 

Sonia Maria de Oliveira

Patrícia Napoleone Giovannetti

Maria José Lima

@emprosasjc

 

 

QUANDO O CUIDADO É PERFORMANCE: A LINHA TÊNUE ENTRE SAÚDE E ESTÉTICA NAS REDES SOCIAIS

 

*Giovana Cardoso Bellato

A relação do ser humano com o próprio corpo está longe de ser meramente biológica e apenas individual. O corpo é, antes de tudo, um espaço simbólico onde se cruzam os discursos sociais, culturais, religiosos, políticos e econômicos. A forma como o percebemos, cuidamos, moldamos ou rejeitamos está profundamente relacionada pela maneira em que o sujeito foi construído historicamente diante de sua posição com a cultura.  No cenário atual, observa-se uma crescente associação entre o corpo ideal – magro e definido – e a ideia de saúde. Este texto propõe refletir sobre como os discursos veiculados pela mídia impactam nossa relação com nós mesmos, a partir de um levantamento histórico, e quais as possíveis saídas para uma construção de cuidado sob a perspectiva da psicanálise.

O corpo perfeito que se propaga hoje é magro, jovem e definido. Nas redes sociais, a gordura, as estrias e a flacidez são apagadas para dar lugar a corpos moldados por filtros e cirurgias, enquanto o corpo real existe somente fora das telas – e olhe lá.  A força desse discurso é tão sutil que vemos uma romantização da saúde e performance como justificativa para a magreza extrema. Sobretudo no último ano, o consumo de medicamentos com fins estéticos, aliado ao discurso do bem-estar, ganhou força e destaque. Canetas emagrecedoras de diversos laboratórios farmacêuticos ficaram fora de estoque quando utilizadas além de sua real finalidade. O uso off label (fora da bula), como no caso da semaglutida (Ozempic), indicada para o tratamento de diabetes tipo 2, foi difundido para fins de emagrecimento antes mesmo de uma liberação formal. Diante desse incômodo, cabe nos perguntarmos: de que forma o discurso entre saúde e estética se cruzaram e ganharam potência na nossa cultura ocidental?

Esse cenário pode ser melhor compreendido a partir de um olhar histórico. Na Grécia Antiga, já se observava uma divisão entre corpo e alma. Platão considerava o corpo transitório e enganoso, enquanto a alma era eterna, ligada ao mundo das ideias. Essa visão dualista reverberou em diversos momentos da história, inclusive a Idade Média, período marcado por uma rígida hierarquia social e moral.

Na época medieval, a sociedade era dividida por ordens sociais rígidas; os indivíduos nasciam e morriam dentro da mesma estratificação, sem possibilidade real de mobilidade e as instituições religiosas dominavam o discurso vigente. Acreditava-se na divisão entre corpo e alma – sendo o corpo fonte de pecado, enquanto a alma poderia ser salva mediante certos sacrifícios. Era necessário sofrer no plano terreno para alcançar a salvação após a morte. Enquanto isso, o desejo deveria ser reprimido, já que era fruto da culpa e do pecado. O autocontrole era rigoroso e imperava diante dos indivíduos que temiam consequências espirituais. Diante disso, a subjetividade e os desejos foram significativamente anulados em detrimento da obediência.

Mais tarde, com a Modernidade e o Renascimento, esse modelo começa a ruir. O sujeito passa a ocupar o centro do saber. René Descartes (1596-1650), com sua máxima “Penso, logo existo”, reafirma a supremacia da razão e da mente sobre o corpo. Após séculos de rigidez, a liberdade de pensamento permitiu o surgimento de diversas correntes filosóficas. Spinoza (1632-1677), por exemplo, foi um dos primeiros a afirmar que corpo e mente são expressões de uma mesma substância – Deus ou a Natureza. Para ele, o corpo deixa de ocupar um lugar passivo: afeta e é afetado, na medida em que se torna papel ativo na constituição do sujeito. Com o avanço da ciência e o nascimento do capitalismo, o corpo vira objeto de observação, cálculo e aprimoramento. A arte vislumbra a harmonia e a proporção; a matemática e o método empírico ganham estatuto de verdade. O corpo, antes sagrado ou pecaminoso, passa a ser racionalizado, disciplinado e, gradualmente, mercantilizado.

Enquanto isso, no século XX, o pensamento neoliberal se fortalece e a ideia central que se vende é de que todos são livres para escolher. Em contraponto, Michel Foucault (1926-1984) nos ajuda a pensar como o corpo se torna alvo dos dispositivos de poder. A disciplina já não se exerce pela força, mas pela norma: a escola, a medicina, o exército, as estatísticas, e os discursos sobre saúde e comportamento moldam sujeitos para que sejam úteis e obedientes. Já Zygmunt Bauman (1925-2017) contribui com seu conceito de modernidade líquida e defende que o sujeito é, ao mesmo tempo, consumidor e mercadoria: vendemos nossa imagem, nosso estilo, nosso corpo. A lógica cartesiana anterior se transforma em “compro, logo existo”. O corpo vira vitrine, promessa de pertencimento. Mas o consumo não preenche o vazio do desejo – apenas o desloca.

Como aponta David Le Breton (1953-presente), vivemos no tempo do corpo prêt-à-porter: moldado sob medida, acessório da identidade, projetado para ser visto, desejado e consumido. O corpo ideal é rascunho eterno – sempre incompleto, sempre em mutação. Deve ser produtivo, estético e controlável. A ideia que se difunde é a de que modificar o corpo é, muitas vezes, modificar a própria vida.

Nas redes sociais, os algoritmos funcionam como forças motoras: produzem comportamentos, reforçam padrões, moldam desejos. Fala-se em autoestima e bem-estar, mas por trás disso uma lógica semelhante à de outros momentos históricos opera: o controle ainda existe, mas de outra forma. Como consequência promove sofrimento, sentimentos de exclusão e não pertencimento – uma normatização disfarçada de escolha.

A sutileza do discurso estético reside na associação entre liberdade e saúde. Falar em saúde parece sempre legítimo. Afinal, quem seria contra o bem-estar? Mas, ao escutarmos mais de perto, percebemos uma estetização silenciosa nesse discurso. “Cuidar de si” vira sinônimo de caber em certos moldes: alimentos “limpos”, corpos “fit”, hábitos “produtivos”. Por trás da aparência do autocuidado, esconde-se uma lógica moralizante: o corpo saudável é o corpo magro, jovem e disposto, no qual quem não se encaixa, falhou.

Essa noção higienizada de saúde desloca o cuidado para o campo da imagem. A saúde deixa de ser experiência subjetiva para tornar-se algo que se vê. Não basta estar saudável – é preciso parecer saudável. A pele deve brilhar, o abdômen marcar, a rotina ser otimizada. O cuidado vira espetáculo; a vulnerabilidade, vergonha. Jovens ganham likes ao exibirem suas rotinas de exercícios, dietas restritas e estilos de vida glamourizados. Além disso, essa lógica escancara desigualdades: não são todos que têm acesso a comida orgânica, tempo livre para treinar ou dinheiro para tratamentos. A cobrança, porém, vem de forma igual para todos: o fracasso recai sempre sobre o indivíduo, como se ele fosse o único responsável por seu corpo, sua estética, sua saúde. A culpa, antes religiosa, agora veste roupa de escolha.

No fim das contas, a saúde tornou-se uma nova versão do ideal. Um novo modo de disciplinar, agora com aparência de liberdade. Um corpo controlado por dentro, pelo discurso, mas com aparência de autonomia. O que deveria ser cuidado virou desempenho. E o cuidado real e subjetivo, aquele que envolve escuta, descanso, falha e tempo, fica para depois.

A psicanálise nos ajuda a compreender a razão desse desarranjo perdurar durante séculos a fio, a partir da sua concepção de que o sujeito se constitui na falta: não somos inteiros, não somos plenos e o desejo nasce justamente desse vazio. E é aí que o discurso neoliberal se encaixa perfeitamente: se ele vende a ideia de que tudo é possível, inclusive sermos completos, o sujeito desconfortável com sua incompletude, compra a ideia de que é possível preenchê-la com um algum objeto, basta adquiri-lo. Essa promessa, ao mesmo tempo que gera desejo, aprisiona. Quando nos valemos de um ideal de corpo, ao buscarmos essas características, almejamos também um corpo que não comporta o vazio e, portanto, nem a dor, nem a insegurança, nem a solidão. Como se, ao alcançar o ideal, fôssemos enfim libertos da angústia de existir.

Sendo assim, a busca pelo corpo ideal revela algo mais profundo: ele se torna recipiente de nossos desejos de aceitação, amor e reconhecimento. Seguindo a lógica normativa predominante: se eu for mais magra, serei mais desejada; se eu parecer saudável, serei mais respeitada; se eu apagar minhas marcas, talvez ninguém veja o que me dói. Molda-se o corpo como se, no fundo, estivéssemos tentando moldar o olhar do Outro.

A psicanálise nos ensina também que o desejo nunca se satisfaz. Justamente por nascer da falta, ele nunca é plenamente preenchido e sofre alguns deslizes. Ao modificarmos o corpo com um fim estético na tentativa de se adequar a um determinado padrão, é possível sentir por um breve instante uma espécie de alívio. Mas logo o olhar se realoca, a falta torna a dar as caras, e a corrida recomeça. O que percebemos, então, é que não é o corpo que precisa mudar, mas sim o lugar que ele ocupa em relação ao discurso.

Cada corpo carrega uma história subjetiva, marcada por potências, limites, resistências… é nesse território complexo que a vida se dá, sem garantias de perfeição ou controle. Uma das possibilidades que se desdobra no processo de análise é justamente a de perceber que, ao se confrontar com suas falhas, limites e vulnerabilidades, o sujeito abre espaço para a construção de algo singular. Não se trata de um conformismo passivo, mas de uma forma ativa de cuidado consigo: uma abertura para acolher os próprios afetos e, com isso, se reposicionar no mundo de modo mais íntegro e potente. Trata-se de um outro olhar sobre si – e, junto dele, sobre as fronteiras que compõem sua existência. Fronteiras que podem se desenhar na pele, na gordura, ou em tantas outras camadas do corpo vivido. Afinal, cuidar de si não é corrigir o corpo. É poder estar nele.

 

*Giovana Cardoso Bellato

Psicóloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Giovana Cardoso Bellato é especialista em Psicanálise: Teoria e Técnica (UNIVAP).  e atualmente cursa pós-graduação em Transtornos Alimentares, Psicanálise e Cultura pelo Instituto ESPE. Atua em consultório particular em São José dos Campos e se dedica a investigar as intersecções entre psicanálise, cultura e sociedade, abordando questões de subjetividade e os impactos da contemporaneidade sobre as relações humanas.

 

A ESCRITA COMO UM RECURSO AOS IMPASSES DA ADOLESCÊNCIA[1]

                                                                                                                   *Marisa Nubile

A adolescência, como sabemos, não é um conceito psicanalítico; é muito mais uma construção datada que, Segundo Perrot (1985), nasce no início do século dezenove a partir da Revolução Francesa e da proclamação dos direitos dos homens.

Lembremos que Lacan se refere à adolescência como um momento traumático (trou-matisme), na medida em que “faz furo (trou) no real” (LACAN, 1974 – 2003, p. 558). 

Isso significa que o “despertar da primavera” irrompe um gozo que o sujeito não compreende e não sabe como tratar. As ficções infantis não são suficientes para fazer face ao assalto pulsional na adolescência. Neste momento, o sujeito se depara com muitas rupturas: o corpo se altera e há uma mudança da imagem corporal. Além disso, é um momento significativo e doloroso de desligamento dos pais (FREUD, 1905). Há uma queda do ideal que constituía a relação parental que repercute na relação com as identificações. Ou seja, as antigas amarrações não operam como antes e o sujeito se vê confrontado com o furo no saber.

Ir em direção à adolescência significa, então, ir em direção aos impasses e soluções encontradas pelos sujeitos diante desse real que se impõe e de onde ele é convocado a realizar um grande trabalho psíquico.

Que recursos lançará mão?

Em Mal estar na civilização, Freud (1930/1980 p. 124) remarca que “separar-se da família torna-se uma tarefa que todo jovem se defronta e a sociedade frequentemente o auxilia na solução disso através de ritos de puberdade e de iniciação”. Em outro texto, Contribuições para uma discussão acerca do suicídio (1910), ele discute a importância de o jovem buscar referências fora da casa e cita o colégio como um lugar que poderia oferecer apoio, amparo e instigar o interesse pela vida exterior.

Em nossa contemporaneidade, estes elementos trazidos por Freud estão postos em xeque. Hoje constatamos que não é mais o ideal do Outro (caldo cultural em que sujeito está imerso) que orienta a vida das pessoas e sim o gozo retirado de objetos postos no mercado. Isso traz consequências sérias, principalmente para o jovem que está neste momento de ruptura e é convocado a realizar remanejamentos importantes.

A questão é que os objetos de consumo não tamponam o vazio existencial do sujeito humano. O importante, então, para além dos objetos postos no mercado, é o sujeito encontrar uma maneira de continuar a desejar no momento em que está diante de uma crise do desejo. (SEYNHAEVE, 2011). Lembremos que este tempo de compreender que é a adolescência[2], significa a passagem da posição infantil onde ele é desejado para a posição desejante. Para isso, terá que inventar soluções.

É dentro deste panorama que trago para discussão a escrita como um recurso possível. Não é uma receita a ser proposta como saída generalizada, há que tomá-la no um a um e dentro da dimensão que a escrita pode vir a ocupar na vida de cada sujeito.

De qualquer forma, fato é que encontramos exemplos de várias pessoas, algumas reconhecidas na cena literária, que escreveram neste período de suas vidas através de diários, cadernos e blogs.

Ao assistir ao documentário brasileiro Pro dia nascer feliz (2006), do diretor João Jardim, chamou minha atenção o depoimento de uma jovem. Talvez ela nos ensine algo sobre a escrita na adolescência. Em meio a pausas e olhares, ela nos diz:

Antes, eu chegava da escola e ficava deitada o dia inteiro, só tomava banho, cama e dormia. (…) morrer seria mais fácil para mim, mas como disse a professora Celsa, se eu morrer eu vou sentir a dor eternamente (…) não dá mais pra morrer. Se alguém dissesse pra mim qualquer coisa que me magoasse eu xingava todo mundo, não sabia como me expressar. Depois que entrei no Fanzine tudo melhorou.

 No meio de uma pilha de papéis soltos, a jovem escolhe um texto de sua autoria e lê:

 – “Simplesmente, sinto que as ideias dilaceram minha súbita nóia, como se as letras formassem minha sentença. Pense e apenas pense: sou mais do que isso, sou a cômica agonia que dilata, dilata. O mundo não é o bastante para mim, tudo é apenas o pouco, o nada. Fico apenas em silêncio, dizendo com ele tudo e com as palavras nada”.

 – Soube que havia pessoas que choravam com os poemas e ficava pensando: será que eu posso fazer alguém chorar com o que eu escrevo? Para mim é tão besta o que escrevo, aí alguém chorar é o maior… não sei!

 Como podemos observar, ela começa falando sobre sua adolescência e desta crise do desejo: morrer seria mais fácil para mim. Momento delicado, onde o gosto pela vida se esvanece podendo levar o adolescente a querer se desvencilhar do desgosto de si através de condutas de risco e até de uma passagem ao ato. (LACADÉE, 2007) 

É diante deste contexto que, para alguns, “o recurso à carta e à escrita de um diário pode ajudar a fixar o gozo a mais (en-trop). (…) Representa então a tentativa de circunscrever a relação com o mundo e com o gozo, vindo no lugar do furo no saber”. (LACADÉE, 2007, p. 89).

Foi bem esse o caso da jovem do documentário que encontrou, na escrita poética, uma maneira de traduzir o exílio de si mesma. Diante do desamparo pela ausência de palavras que pudessem nomear aquilo que era percebido como um vazio, ela escreve: fico apenas em silêncio, dizendo com ele tudo e com as palavras nada. Em última instância, ela toca em uma questão que concerne a todo ser falante, ou seja, de que a palavra não dá conta de representar o irrepresentável. Por outro lado, é usando a palavra que essa jovem encontra recurso para contornar esse impossível.

Mas, não qualquer palavra, não de qualquer maneira. Isso significa que a professora, ao oferecer um espaço de acolhimento[3]daquilo que era produzido pelos alunos, permitiu que um canal de expressão fosse aberto e que a invenção fosse aceita: eu xingava todo mundo, não sabia como me expressar. Depois que entrei no Fanzine tudo melhorou. Se os jovens são fabricantes de novas maneiras de se expressar, esta professora soube fabricar iscas para que seus alunos (ou alguns deles) pudessem e quisessem participar do jogo da linguagem.

No caso do testemunho da jovem, o jogo com as letras na feitura de poemas, além de apaziguá-la, pois contornou e fixou esse gozo errante e excessivo: sou a cômica agonia que dilata, também lhe possibilitou uma via possível para fazer laço social: Soube que havia pessoas que choravam com os poemas.

Ainda com Lacadée (2007, p.90), podemos dizer que “lá onde alguns fazem curto circuito no processo de tradução, a escrita teve (para esta jovem) função de suplência”, ou seja, usou este recurso como um arranjo possível diante do desarranjo próprio à adolescência.   

                                                 Referências

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980

FREUD, Sigmund. Contribuições para uma discussão acerca do suicídio (1910). In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980

____. O mal estar na civilização (1930). In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1980

LACAN, Jacques. O despertar da primavera (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003

PERROT, Michelle. La fin du charivari. In: L`Âne, no. 22. Jul-set, 1985.       

LACADÉE, Philippe. L’éveil et L’exil. Nantes, Editions Cécile Defaut, 2007

SEYNHAEVE, Bernard. Lʼadolescence au siècle de lʼobjet. Disponível no site: http://pontfreudien.org/content/bernard-seynhaeve-ladolescence-au-sciecle-de-l’objet 

SILVA, Rômulo Ferreira.  Argumento do Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Adolescência, a idade do desejo, 2016.  Disponível no site: http://www.encontrobrasileiro2016.org/encontro-1

  [1] Partes do texto apresentado na Jornada de Psicanálise do Instituto de Psicanálise da Bahia. Salvador, 2016

[2] “Jacques-Alain Miller articula a adolescência com o Tempo Lógico de Lacan, ao estabelecer a puberdade como o instante de ver, que antes era marcado pelos ritos de passagem. Do corte que provocava o aparecimento de uma metáfora da puberdade, abriu-se um intervalo que é o tempo para compreender e que chamamos adolescência”. (SILVA, 2016).

[3] O filme mostra que a professora de língua portuguesa, Celsa, trabalha com seus alunos em um ateliê para criar um Fanzine. Trata-se de um recurso onde um grupo de alunos cria um pequeno magazine distribuído e divulgado na comunidade escolar ou no bairro. O tema é sugerido ou proposto e os textos e ilustrações podem ser recolhidos tanto de fontes externas como da produção textual e gráfica dos próprios alunos.

*Marisa Nubile 

Psicóloga e psicanalista. Associada ao Clin-a, Instituto da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) seção São Paulo. Doutora em Psicologia e Educação pela USP.

 

 

NÃO FAZEMOS SENTIDO SOZINHOS: REFLEXÕES SOBRE O SUJEITO DA ATUALIDADE E SUAS RELAÇÕES.
  

 *Elza Regina Batocki

Vivemos um momento histórico delicado em se tratando de processos de subjetivação. Os avanços tecnológicos seguem avançando em todas as direções, abreviando tarefas e estreitando caminhos. No entanto, cresce a cada dia a ‘falta de tempo’ para as experiências mais simples e essenciais para a constituição da subjetividade. Na era da utilidade, sobram-nos os recursos e falta-nos a sabedoria para fazermos uso destes.

Para a psicanálise o sujeito se constitui a partir de seus relacionamentos e das marcas destes herdadas, sendo, portanto, dependente do seu meio. Estamos continuamente incorporando o ambiente que nos circunda e nos inscrevendo nele. A realidade interna, como diria Winnicott, se sustenta na realidade compartilhada e vice-versa. Porém, os avanços nos conhecimentos e tecnologias tem sido suficiente para nos tornar mais sábios e preparados para vivermos em grupo?

Quando se busca uma definição de cultura para o momento histórico em que nos encontramos, percebemos o quanto o processo de subjetivação tem se mostrado difuso e indefinido.

Pergunto a um garoto de 10 anos sobre o que é cultura para ele e sua resposta muito simples é a seguinte:

“A Cultura tem a ver com aquilo que é específico de um ‘lugar’ (da história daquele lugar), é tudo que fica do costume daquele povo. É como uma Identidade. Aliás a Identidade precisa de uma Cultura. ”

Mas o que pensar sobre o volume e a qualidade dos conteúdos que temos produzido e consumido nos dias atuais e nas condições que temos criado nossas relações?

A cultura não está relacionada a posse de conhecimentos e saberes, não havendo, portanto, pessoa inculta, nos aponta Chauí. Assim como demonstra a origem dessa palavra, (colere) cultura está relacionada ao ato de cuidar, e cita alguns exemplos como a puericultura (cuidar das crianças) e agricultura (cuidar das plantas). Para esta, refere-se à capacidade de se relacionar com o ausente, com os símbolos.

Nesse sentido, poderíamos pensar que a cultura fundamenta a identidade de um povo, inscrita através de hábitos (tradições, ritos) que mantém a ligação de um sujeito com seu grupo? Ainda que inconscientemente?

Quando a mesma pergunta é feita a um adulto, nos deparamos com os ruídos decorrentes dos excessos de informações e associações em torno do seu significado, e por consequência a perda do seu sentido.

Esse é um risco que corremos ao pensar que o acúmulo de informações nos garante algum tipo de autoconhecimento. Pelo contrário, o que parece mais comum é um apagamento das culturas e identidades.

Estamos jogados inegociavelmente num ritmo frenético, repleto de urgências, que nos mantém ocupados demais para ‘pensar’ o que estamos vivendo. Desse modo, estamos perdendo a capacidade de viver a experiência presente. Em seu livro ‘Ideias para adiar o fim do mundo’, Krenak comenta que é “como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido”, nos alertando para um afastamento da natureza. Estamos assistindo um afastamento da natureza humana e ficando cada dia mais semelhantes ao funcionamento maquinico / mecânico.

Quando Freud criou a Psicanálise o mundo era algo diferente daquilo que experimentamos hoje. A realidade cultural e consequentemente os enquadres daquela época ficavam em torno de estruturas neuróticas.

Para alguns autores mais recentes, como Green, o sujeito moderno caminha pela via da não-neurose. Para ele, esses casos-limite, apresentam um empobrecimento das representações, dificultando a simbolização. Sem representação e processo simbólico o sujeito fala, atua, expressa mas não comunica nada. Pois sem essas condições psíquicas não há ‘lugar’ para o desejo inconsciente.

As condições de vida contemporânea atropelam os processos mais importantes para integrar um sujeito, ainda que este funcione bem socialmente. E as novas patologias nos convocam a olhar para sentidos perdidos (cito como exemplo as demências como Alzheimer) ou para a emergência de criá-los (como os autismos).

O que podemos enxergar dos sujeitos e suas relações quando somos freados por experiências desse tipo dentro do nosso cotidiano atribulado?

A Psicanálise se interessa pela interpretação dessa realidade, que é subjetiva e coletiva ao mesmo tempo.

O lugar do analista hoje vai além da escuta neutra e cuidadosa, é preciso chegar mais perto para ouvir melhor e quando preciso, construir junto uma nova linguagem.

  

REFERENCIAS

 Chauí, M. (2018) ‘Escritos de Marilena Chauí / O que é cultura?’ Grupo Autentica – in: Escritos de Marilena Chaui | O que é cultura?

GREEN, A. (1974). ‘O analista, a simbolização e a ausência no contexto analítico’. A loucura privada: psicanálise de casos-limite. São Paulo: Escuta, 2017

Krenak, A. (2019) ‘Ideias para adiar o fim do mundo’ – São Paulo – Companhia das Letras, 2019.

 Winnicott, W.D (1971) ‘A localização da experiência cultural’. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975

 

 *Elza Regina Batocki

Graduação em Psicologia pela UniSal – Lorena (2008), pós-graduação em Clínica Psicanalítica pela mesma universidade (2010), formação básica em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientae – GTEP de Lorena (2017)